Nota de apresentação
Este texto ficou na gaveta por 10 anos, circulando entre amigos e companheiros de pescarias e viagens. Finalmente publicado, ainda que em blog pessoal, acrescentei apenas fotos que não estavam disponíveis nas versões compartilhadas até agora. O fato de ser o primeiro texto neste blog se deve ao recente despertar de interesse no tema "Xingu": pareceu oportuno começar por ele.
Relatos do Kuluene
Guia de compartilhamento de experiências de e para pescadores
Autoria múltipla
(não temos tanta criatividade nem coragem para tudo que está aqui).
Relator:
Marcelo Araújo Campos
com auxílio direto na elaboração de
Tiago Gonçalves de Araújo, vulgo Anta-cor-de-rosa
Ilustrações:
Felipe, fotos e desenhos
Fotos também do Izalmo e a máquina maravilhosa
Palpites: todo mundo
acima: seria injusto não dar aos leitores uma idéia (ou lembrança) do ambiente para contextualizar os acontecimentos. Essa foto é de 2006. O kuluene continua lá.
I-QUESTÕES INICIAIS E EXPLICAÇÕES NECESSÁRIAS
Nota do relator
A versão dos fatos aqui registrada não se pretende mais verdadeira que outras. Aliás, como o escrito fica e o não escrito se esquece, é bem possível que, com o passar do tempo, esta versão passe a ser tida como “oficial”, os fatos tidos como “reais” por outras pessoas acabem esquecidos. O muito repetido às vezes substitui a memória. Fica o pedido de desculpas pelas eventuais injustiças cometidas com os companheiros, se no afã de contar nos deixamos levar pelas tendenciosidades.
Kuluene, Coluene, Culuene ou o quê?
Opção pela grafia nos mapas locais.
A turma
Os Valim, gente agradável, com o Sr Mário à frente e o Valimzim menor atrás (quando na estrada), sem pressa e sem raivas, sossegos.
Totó, candidato a membro mais exótico da expedição, embora o páreo seja duro: Paulo-Pito e o Jaú-Tabagista, digo, Silvinho-Tonelada, obeso professor de ginástica, que viajava em abstinência de nicotina, proibido pelos colegas de fumar a bordo, agüentando bravamente, olho no odômetro: "já rodamos uns 100 km: vamos dar uma paradinha?".
Izalmo Pancho com a máquina fotográfica descrita adiante.
Cleiton, que contratou um piloteiro cuiabano, cego pela catarata, contribuindo para abertura de novos canais no Kuluene, à força de barrigadas da canoa na areia, quando “esquecia” as curvas e passava direto.
Nino com extrema habilidade para encaixar muitos sentidos à palavra "bosta": pode ser xingamento, pode ser elogio (no estilo antecipa crítica fazendo crítica dura querendo dizer que é bom); pode ser espanto (que merda é essa?), etc, etc...
Quem pescou esse peixe?
Pergunta tão freqüente como difícil de ser respondida. Problema grave, o conceito de "pescou" é vago, ouvimos explicações diferentes, como sempre produzidas por interesses diversos:
a)quem é o proprietário da vara onde o peixe se pendurou;
b)quem iscou e jogou o anzol na água;
c)quem fisgou o peixe quando percebeu que a vara, na secretária, estava balançando;
d)quem recolheu a linha trazendo o peixe e
e)quem tirou o peixe da água.
Raríssimas vezes a mesma pessoa cumpriu mais de 3 desses itens, o item "e" quase sempre era o piloteiro, assim como o "b" e o "c". Dessa forma, chega-se a algumas interpretações possíveis do que foi observado:
a)o único pescador era o piloteiro;
b)é só deixar que os próprios peixes se pescam, o piloteiro recolhe, pronto, turista é anexo que só atrapalha (na visão do piloteiro) ou só ajuda a escapar (na visão dos peixes).
É forte a suspeita de que seja mito a figura do turista-pescador, criação coletiva que só existe para deixar grana nas pousadas e engambelar os turistas que ainda vão embora felizinhos da vida, se sentindo provedores de alimento para as famílias e amigos e heróis da selva, matadores de peixes venenosos que infernizam a vida das populações do Kuluene.
Com tantos fatores de confundimento e interesses envolvidos, os relatores optaram por solução óbvia e que aliás não fica longe da verdade: eu pesquei ou nós deixamos escapar.
Resolvido o problema da autoria dos peixes embarcados e escapados, podemos avaliar como decorreram os demais fatos em derredor, sendo proposto olhar sistêmico, atento às sutilezas de ambiente tão sofisticado.
II-IDA
Ainda nos primeiros kilômetros Izalmo com seu chapéu Três-xíses, chique no úrtimo, combinando com o cinto e com a botina, foi abrir a janela para arejar um peido de Felipe, botou a cabeça para fora e o vento levou o chapéu, uma carreta que vinha atrás abriu a buzina, o motorista num sorrisão enquanto passava os 16 pneus por cima, "pára, pára, meu chapéu de cento e cinquenta reais, ainda nem recebi a fatura, couro de lebre". Quando pegou, parecia panqueca de gato rajado. Uma aba ficou aleijada, deu um ar de gangster bicha, reviradinha prá cima.
Felipe judiou de nós a viagem toda. O desconforto dos peidos foi piorado no último trecho, Canarana-Pousada, estrada de terra, umas 4 horas catando buraco, chocalhando, fedendo e, para completar, ouvindo o único disco que a disqueteira emperrada tocava, do Julio Iglesias. Deve ter sido karma, vou renascer de alma lisa.
Carro deixado em Canarana, espera no trevo, no boteco alegre, com as moças gente boa, bebendo cerveja: duas mornas, quatro quentes e acabou o estoque. Aliás foi nesse boteco/puteiro que pedi barbeador, ela veio com um cor de rosa e me acalmou: "-é unissex", com o que concordei fácil: "É mesmo: para mulher e bicha".
III-LÁ
Casos do dia a dia
Logo na chegada, Izalmo estava gripado: Tõe Lino se pendurou num pé de limão até conseguir derrubar dois limõezinhos meio murchos, espremeu num copo, acrescentou outros ingredientes, não aprovou, misturou outra vez numa copada, ia tentando acertar, passou cachaça, faltou cheiro verde, deixa ver o que tem nesse armário, dê cá o bicarbonato, mistura outra vez, foi indo, era pra ser uma colher e virou uma copada, Izalmo tomou agradecido. Quando acabou de virar tudo de gut-gut, engrunvinhando a testa e sem respirar para não vomitar, evêm Tõe Lino voltando, tinha ido buscar uma colherinha de café: "-toma só uma destas por dia". Não sarou, mas cagou uma lombriga que dava medida pra passar na exatoria e quase estourou a quota.
acima: Izalmo e Wagão nem sempre ficavam satisfeitos onde estavam: aproveitavam os deslocamentos para refrescar o calor com um ventinho, que ainda espanta os mosquitos.
Era uma bebeção! Como resultado, depois de tentativa minha de mostrar macheza oferecendo e bebendo ainda mais (dizem que eu perguntava: -"tio, quem faz essa pinga é meu avô?" "não, foi o bisavô" "então tem de ser dose dupla") tomei birra de cuia, principalmente das com um pescocinho onde fica outra dose. Para desespero do candidato a cirrosento, havia acabado o derradeiro prato de torresmos de piranha e peixes fora de medida (devidamente despistados em picadinhos), tive de me contentar com os queijos, salaminhos, palmitos, azeitonas e farofa de tatu. Um sacrifício!
Num dos pileques, à tarde, tive de ir ao rio nadar, o piloteiro concordou, apeamos na margem esquerda, do outro lado, largou eu e Felipe lá, distância segura para curtir o pileque e vomitar em paz, veio embora. Tirei a roupa, nadei, vomitei, tomei sol, melhorei um pouquinho, olhei o rio: uns cento e cinquenta metros até o outro lado, a correnteza forte, redemoinhos, piorados pela zonzura. Vamos lá. Nadei evitando abrir os olhos na água, assustar com alguma coisa: se amolecer de cagaço, bau-bau. Nem pensar em piranha, candiru muito menos. Subi ao barranco do outro lado meio bambo, e me dei conta: puta que pariu, as calças ficaram do outro lado. Fui até os piloteiros, expliquei a situação, me avisaram: tem de buscar, senão as capivaras e antas vão mastigar tudo, ‘tão puro sal. Fui, voltei com um ventinho no rosto, duas copadas de caldo de piranha à noite e estava salvo.
À noite, não era só eu quem estava nauseado, Wagão bateu na porta do quarto da cozinheira para pedir sal de frutas (explicação aceita sem contestações). Quando estava preparando a beberagem, aparece Cleiton: "-é bebida?" "não, remédio", "companheiro é companheiro: bota um prá mim também".
Quando estávamos em terra, o tempo todo alguém (embora Totó fosse o mais assíduo) indo até a cozinha, já tinha até trilha na poeira do chão, a cozinheira com a bunda roxa de beliscões, felicíssima, pratos e pratos do que quiséssemos.
Numa das ressacas, alguém solicitou socorro para aliviar o pom-pom-pom de enxaqueca pós-alcoólica, o coronel, prestativo, acudiu logo com Cibalena retirada do estojo de primeiros socorros dos tempos da ativa, data de validade, só percebida depois, novembro de 1976, uma benção!
Numa das noites houve ensaio de caçada de pacas, coronel à frente, com os piloteiros recrutados, depois do banho, escovado e pimpão, espingarda ao ombro. Durante a espera, não contavam com a presença de pintada nas imediações, na primeira brisa de catinga da bicha a caçada foi abortada, embora as explicações que nos tenham chegado de motivos do abortamento tenham sido diferentes: segundo o coronel, ele teria tido uma crise de consciência ecológica, além de que a lua cheia atrapalhava, e resolveram voltar aproveitando o frescor da noite, com uma paradinha para nadar (há quem diga que estava lavando a bunda, êita povo fofoquento). Nova tentativa posterior não foi tão vexamosa.
Sucesso garantido foi a pescaria do barco de Rambinho, Tiago (vulgo "Anta-cor-de-rosa) e este humilde relator, responsável pelo embarque de cachorra (Hidrolycus, segundo o cartaz de peixes pregado na parede da pousada) que sem nenhum exagero, ao ser recolhida retificou umas três curvas do rio - novo mapeamento por satélite mostrará área reta, onde ficava o Poço do Russo, facilmente identificada, que sugerimos seja batizada com nossa modesta lembrança de pescadores fodas. Os dentões tão aqui, de prova, a foto do heróico responsável anexa. Mesmo com a evidência de bravura e competência que tal captura evidenciou, registre-se termos ouvidos comentários de puro despeito quando chegamos: "cachorra não presta", "peixe besta, agarra qualquer coisa que joga perto", "espinho puro", "ocê come isso?". A inveja é uma merda. Trouxemos assim mesmo. Abaixo, em foto feita pelo Felipe: prova cabal de que nós num brinca.
acima: chegando do rio com a maior cachorra que o Kuluene já viu...
Ainda revoltados com a flatulência de Felipe na vinda, que continuava dando mostras de botão deseducado, botamos uns 40 ovos de tracajá cozidos sobre a mesa, sal, cerveja em lata geladinha, combinamos com Lu (a cozinheira, Flor do Kuluene - vide as fotos para verificação de como o senso estético também pode ser uma questão de oferta e demanda) para atrasar os demais tira-gostos, botamos o prato na frente de Felipe, faminto, não deu outra: comeu quase duas dúzias, os beiços lustrosos de óleo amarelo dos ovos. No outro dia já estava manso e polido, não peidava de jeito nenhum com medo de se borrar todo. Abençoados ovos de tracajá: virou Felipe-botão-de-lady.
Um episódio instrutivo: O cachara amestrado
Antes da descrição dos fatos como exatamente acontecidos, de maneira isenta e honesta, como tem de ser num relatório desta categoria, cabe explicar que o que aconteceu não foi planejado com antecedência. Queremos dizer que não somos de ficar judiando de turistas, apenasmente tivemos reação natural às desfeitas que sofremos, quando depois de pequenos contratempos, fatalidades que acontecem a qualquer pescador experiente - descritas a seguir - percebemos, como disse Tiago, -"esse povo tá rindo de nós".
Vejamos os antecedentes: duas curvas antes da barra do Sete de Setembro, pesquei (veja-se a questão da definição de autorias de peixes pescados, acima) um cachara que não passava vergonha, colocado no viveiro para um repouso. Ao chegar à curva do Xingu, na Sayonara, nos deparamos com o habitual congestionamento de barcos, incluindo participação organizada de umas onze canoas numeradas de turistas estrangeiros, pescadores profissionais sem dúvidas, a julgar pela categoria dos equipamentos e compenetração com que se dedicavam.
Logo na chegada, nosso piloteiro Rambinho resolveu de partir uma traíra, o que fez a poder de jeitosas facãozadas sobre a lata, espaventando até as garças que tavam num poleiro dois kilometros acima, quanto mais os peixes já desconfiados e com as bochechas feridas pelas fisgadas anteriores (os peixes do rio tomam fisgadas regulares desde a infância, motivo pelo qual se tornam levemente avessos a anzóis e barulho de canoa).
Com a pancadaria que parecia ensaio do Olodum de passagem pelo Kuluene, recebemos olhares, muxoxos e resmungos de recriminação da chusma toda, enfiamos a viola no saco e nos aquietamos, sem coragem nem para abrir uma cerveja, para não perturbar o sossego. Passamos então a levar a sério nosso papel de pescadores. Lamentavelmente, até o piloteiro, normalmente o único a lidar com a tralha com naturalidade, resolveu de pinchar a cabeça de uma matrinxã mas errou a lançada e arrebentou a linha, que se perdeu com tudo. A canoa de lado não perdoou: "dando comida desse jeito para os peixes, não vamos pegar nada", o que foi ouvido com agrado e riso pelos outros dezenove barcos ao redor, cada barco com pelo menos três pessoas.
Acalmada a situação, tentei fazer um lançamento que nos reabilitasse, mas cometi dois ligeiros equívocos: esqueci de destravar o molinete e de olhar para trás, resultando que fisguei a corda da poita e com a puxada só não capotei de costas por que o encosto da cadeira me segurou, sobrando o solavanco para o sovaco e os dedos na linha, quase arrancando as tampas dos dedos. Outro engraçado aproveitou: "técnica dessa de recolher a poita é novidade...", e toma "quá-quá-quá" geral, um vexame.
Para aumentar a auto-estima dos companheiros do nosso barco, resolvi pedir umas instruções da Anta: "ô Tiago, deixa eu ver essa carretilha lindosa, é importada, né? me ensina como é que usa...", o que até tava dando resultado, ele se animou, recolheu o piau que estava se decompondo intacto na água e passou a me explicar, foi demonstrar e fez uma cabeleira na linha (não era cabeleira, era uma peruca black-power) só faltando dar a bainha e colocar as mangas para ser usada como suéter. Uns vinte minutos de peleja, suor na testa, mordendo a língua, virando pra lá e pra cá a carretilha no colo, até entregar a rapadura, resolver tudo com o canivete e colocar outra linha.
A essa altura, já tinha gente nos barcos ao redor abrindo cerveja e se animando a fazer gracinhas com a nossa pagação de mico, até os que estavam longe viravam o pescoço, com ar de riso. Um bigodudo de peito estufado, com ares de autoridade e necessitado de se fazer notar, era dos que mais mostrava criatividade nos sacaneando, não pescava nada mas nem precisava: nós éramos diversão garantida, material para piadas e risinhos junto com a mocinha xexelenta que estava com ele.
Corri os olhos nos companheiros, tudo jururu, avaliei a situação, desde que havíamos chegado não vimos barco nenhum pescando nada, pensei: o que será que pode ser a glória máxima de um pescador? Peixe, é claro! Uai, peixe nós tínhamos, era só um, mas era.
Com muito jeito o cachara do viveiro foi convocado, passei a nossa linha da vara mais forte, sem anzol, por dentro da boca e por trás das guelras, fiz uma laçada, amarrei bem, com muito despiste escorreguei o peixe para a água, deixei nadar e comecei a recolher a linha, sapateando no assoalho da canoa: "-ôpa, ôpa, acho que enrosquei a linha...", o bigodudo escutou, olhou, nessas horas, quando alguém pesca, fica todo mundo olhando, não resistiu: "não é enrosco, não tá vendo que a linha tá andando? Tira daí, que é peixe", gritava, meio sem-graçoso, mas aproveitando para tamponar a inveja com ensinamentos de autoridade.
Tiramos o cachara da água, murmúrios gerais, "pegaram, pegaram...", e se acalmaram. Uns minutos de silêncio, o cachara é deslizado por trás da canoa outra vez para a água, devidamente seguro na coleira, esperamos para nadar para mais longe um pouco, a linha bem frouxa para ir tomando à vontade até dar uma distancinha, pronto, evem de novo, mais falas altas nossas: "-ô, Tiago, agora foi a sua vara: parece que tem uma piranha comendo a isca"; "piranha nada, é peixe e grande", etc, etc, lá vem o cachara, ameaçando umas rabanadinhas de protesto, reforçadas pelos nossos safanões na vara, sacudindo a linha, embarcado outra vez. Espanto na outra canoa perto, uma coroa emperiquitada atrás de nós custou a acreditar: "outro? Já? Que sorte, heim?"
E íamos naquela mumunha, botando e tirando o cachara da canoa. Foi ficando cada vez mais difícil fazer a coisa sem despertar suspeitas, a cada embarcada era necessário mais tempo para pararem de comentar - havia dúvidas se era o quarto ou quinto peixe pego, uns dois barcos mudaram despistadamente de lugar para lançar as linhas onde as nossas estavam - Tiago teve de pular na água umas duas vezes para nadar e eu aproveitava para soltar o bicho por trás dele, e sempre nós fazendo muito barulho a cada embarcada, e estapeando as cadeiras para simular rabanadas dos cacharas, bichões brabos.
A cada retirada, comentávamos, discutíamos o assunto: Seriam clones? Explica aí Tiago, zootécnico. Ou ninhada? Cachara anda em cardume? O barulho nosso, a pulação na água, nós nadando ao redor da canoa, a pulação "dos outros peixes embarcados" (na verdade, nossas botinadas no fundo da canoa) atraíram os outros? Vai saber? Pescaria é coisa misteriosa...
Houve um momento de interrupção, quando um barco de mauricinhos fisgou alguma coisa e aprontou a maior confusão, mandaram soltar a poita “-solta, solta, dá linha, acompanha, tem de cansar ele primeiro”, deram uma voltinha gloriosa, todo mundo olhando com inveja respeitosa e até algum alívio (“não são só eles que pegam”), o rapazinho papudo choferando a canoa e recolhendo a linha, rebocados pelo peixe, até parar ao lado (cúmulo do azar dele) da nossa canoa, bem à vista da nossa falta de piedade: “uai, cadê o peixe?“ “Será filhote dos nossos que veio ver os avós?“ Pescar isso dá cadeia...”, “covardia, sô...” “só noventa e cinco centímetros? Não tem de soltar?” “Soltamos um desses agorinha, ali em cima, cês podem fazer o favor de ver se tá com o nosso anzol na barriga e devolver? É anzol de estimação...”. As outras canoas, dedos na argola, riam alto, agora eram todos nossos aliados, transferiam as gozações e inveja para os coitados que embarcavam o peixim. O cúmulo foi quando oferecemos: “querem duas latas de cerveja em troca desse bagrim?”, ao que responderam putos: “temos uísque”, mas se calaram ante o incontestável: “nós tem é peixe!”. Glória total.
E continuamos a avacalhação, até "completar" oito cacharões devidamente escondidos sob a lona da canoa, o que repetíamos a cada vez: "levanta a lona, lá vai mais um". Não erramos nenhuma fisgada, trabalhamos as varas com uma eficiência e um auto controle de espantar, uma frieza e uma calma para trazer os peixes que comovia, tal nossa nobreza nos gestos de pescadores acostumadíssimos a esses encontros com peixões do sertão. Nos soltassem quinze dias no rio e se acabava o Kuluene como pesqueiro. Imagem de pescadores. Podíamos vender santinhos com nossas fotos para dar sorte ou assinar contrato de piloteiro com qualquer um ali, pagando acima da média pelos nossos prestimosos conselhos.
É claro que essa não é experiência que se tenha sem que fiquem seqüelas na platéia. Nunca vi tanto japonês com olhos arregalados, justo eles, que tanto almejam o sucesso dos humildes e sem bazófia, como o nosso. Um deles, de chapéu com mosquiteiro amarrado no alto da cabeça, só conseguia repetir "impressionante, impressionante...", fotografara os últimos 4 retornos do cachara puxado pela coleira, digo, peixes pescados, cada hora de um ângulo: atrás do motor, na frente da proa, atrás da poita, passando por debaixo da canoa, peixes fisgados contrariando todas as orientações de como pescar no Xingu, nós fazendo pose para ele, que não resistiu e pediu delicadamente para levantarmos o peixe para aparecer melhor, ele num tinha pescado nada, queria uma foto...
Como a nossa foi a única canoa na história do Xingu, à frente de numerosas testemunhas, a pescar 8 cacharas em menos de 2 horas no mesmo lugar e contra todas as orientações tidas como normas de pescaria (não fazer barulho, não afrouxar a linha quanto fisgar, trocar as iscas, cachara não anda em cardume, etc, etc...), passamos a ouvir, de início, comentários, que respondíamos como se não estivessem perguntando, mas comentando também: "bom mesmo é lá no Russo, lá nós pegamos muito mais, cada Jaú e Pirarara e Filhotes. Numa das fisgadas nem precisamos ligar o motor para voltar: ela desembestou rio abaixo e nos rebocou, quando chegamos no deck da pousada a embarcamos, deu umas duas horas de economia de combustível, com o barco carregado. Viemos com os pés nas costelas de um Jaú que parecia um tronco, o rabão teve de ficar de fora, a barrigada deu almoço e janta para a urubuzada toda da região, tinha 2 matrinxãs de medida no bucho, fora as miudezas de piranha e piauzinhos de palmo e chave, que aproveitamos para isca.". Tudo dito em tom de grande humildade, a coisa mais natural do mundo, e dando a entender que eles também deviam ter pescado muito mais que nós, turistas desajeitados.
Depois de tal demonstração de sabedoria, acompanhada da acachapante lição que haviam presenciado, fotografado e discutido sobre como encher a canoa de cacharas, alguns passaram a pedir sugestões, ouvindo nossos conselhos experientes. Com isso, ficou acertado o encaminhamento da flotilha de japoneses para o Poço-do-Russo, três horas de barco rio acima, com nossas piedosas explicações de que "só pega com isca branca, viva, associada a minhocas (caríssimas, só encontradas por encomenda em Canarana, a 110 km e 400 lombadas pela estrada de terra, só na ida) e entre meia noite e uma e trinta da manhã".
Lamentavelmente esse encaminhamento teve repercussão inimaginada: a implicância que os Kalapalo, que estavam tentando caçar tracajás (em desova) nas praias à noite, passaram a ter dos estrangeiros, vistos a noite toda rumo ao Poço-do-Russo, assustando os tracajás, impedindo a caça, deixando os índios famintos e putos da vida. Do deck da pousada, à noite, apreciando o movimento e bebericando cervas, já sabíamos: era passar uma canoa e vinha a gritaria dos índios xingando no escuro: “êvem de novo, praga de japonês...”.Aliás, registre-se em defesa dos índios, de quem se diz ser tudo ladrão. Ao que sabemos, não roubaram nada. A rede que sumiu foi Totó que fez doação para os índios, parentes de Marieta Coca-Cola, digo, Kalapalo. Portanto, Xavantes, Javaés, Kalapalos, baê! Sentimos muito pelos tracajás assustados.
Houve outras seqüelas, menos vistosas, como a revolta dos outros piloteiros com nossa engambelação, quando souberam pelo nosso piloteiro a explicação real, após terem ouvido dos turistas cobranças e mais cobranças para irem buscar iscas brancas, irem a outros pesqueiros, uma falta de sossego, queremos ir ao Poço do Russo, dois piloteiros passaram a noite em claro pajeando japonês renitente que queria cachara.
Já na volta, fomos informados de que o bigodudo, depois de rever os conceitos que tinha de pescaria, trocou de hobby, virou colecionador de selos, dizem que já tem uma coleção grande, só não tolera selo temático, desses com foto ou desenho de peixe, coisa de um mal gosto horroroso e que devia ser proibida, ele inclusive já mandou carta para o senado sugerindo projeto de lei: selo só de heróis nacionais, Sílvio Santos, Duque de Caxias, Tamandaré (esse com dúvidas, o nome lembra nome de peixe, Floriano Peixoto é sem chance).
Dois barcos se recusaram a pescar, passaram a só tirar foto, montaram uma ONG de defesa dos cacharas, estão faturando com pescadores ecológicos, que só vão lá para ver o rio e ouvir a história de criminosos como nós, assassinos de peixes. Desconfiamos que foram eles quem nos denunciaram ao posto em Barra do Garças, informados de que dois turistas haviam estourado a cota em mais de duzentos kilos.
A tecnologia xinguana
Para os (principalmente as) que reclamaram de falta de contato, vale explicar como foi um telefonema da Pousada Xingu para o mundo. Depois de esperar o gerente da pousada chegar e se dispor a explicar o processo de chamadas, ensinar o caminho e ligar o gerador de eletricidade para tentar carregar a bateria do celular; pela busca das conexões nos armários da pousada; viajar da pousada ao ponto mais alto, no meio do mato, onde fica a antena, por estrada com areia afundando as botas ao apear do carro; tentar as conexões em todos os telefones disponíveis; tatear tentando fazer os encaixes dos fios da antena e do conector no telefone, no escuro, tentar ouvir no meio da chieira se está funcionando, tentar outra vez, ouvir alguma coisa, falar sem saber se está sendo ouvido, enquanto aumenta o lucro da telefônica e dos mosquitos e borrachudos, com risco de deixar cair o telefone, estapeando a testa, as orelhas, os braços, coçava as costas, o pescoço, etc, etc...
Isso para um telefonema. Tive que tentar outros três. Quando voltamos da ida ao orelhão (a minha orelha, inchada de picadas) o churrasco já tinha esfriado. De volta, escuta-se: "-você não ligou para mim!".
Beber na canoa é um problema, mijar um risco, cagar na praia um atraso. Discutimos o projeto de privada de bordo, com barra para apoio dos braços e abertura direta para a água, inclusive com duchinha higiênica com caninho contra a corrente, é só mover a canoa que a água reflui pelo cano, outra saída a favor da corrente para ir lavando a privada. Falta registrar patente, lembrando os argumentos de segurança e alívio pra bunda ficar livre dos borrachudos. Antes que façam pouco-caso do nosso potencial como inventores, vale lembrar duas amostras de mercadorias vendidas no mercado e que tivemos oportunidade de apreciar em operação durante a estada:
1-Máquina fotográfica do Izalmo, com inconvenientes, coisinhas bestas, por justiça aqui relatadas para não sermos acusados de omitir imperfeições ridiculamente pequenas e que em nada denigrem a babosa maravilha: são necessárias algumas pilhas - carregamento com uma proporção de 2 pilhas por foto feita (ou seja, com a ninharia de 180 pilhas AA usa-se com tranqüilidade a máquina, apenas interrompendo a cada foto para a troca de pilhas, com a colaboração compreensiva dos bichos, tracajás, e peixes que estão posando sem pressa nenhuma - turista é turista), são recomendados dois piloteiros pra carregar as baterias de carro, 12 volts, com os devidos adaptadores (quando no rio) ou (quando em terra) de fio de extensão (mínimo 20 metros), 4 conectores diferentes, um vídeo cassete com gambiarra e um técnico em gambiarras várias. As fotos são boas.
2-Lanterna do Tõe Lino, peça luxenta, do estrangeiro, foi apresentada pelo proprietário, à noite, enquanto, com a lixa de unhas da cozinheira solícita, desbastava componente que sofrera hiperaquecimento. Logo se percebeu que era de operação simples e muito prática: com uma mão, segura-se a dita cuja, com a outra maneja-se o foco, com os dentes (variante: com o pé) tenta-se ajustar a lâmpada, apertando o conjunto todo no peito, com jeito para não inviabilizar o olhar sobre o efeito que se está tentando conseguir. Talvez isso fosse facilitado com o piloteiro (pau para toda obra) segurando um espelho, por cima, para dirigir o facho de luz. Foi cogitada para ser usada em expedição pacacida, mas após demoradas e sérias considerações, turbinadas por cuiadas de Ligurita, chegou-se à conclusão de que talvez não fosse o equipamento mais adequado, dada a ausência entre os colegas da expedição de ginasta ou iogue capaz de passar os pés por cima dos ombros, por trás, para ajustar o botão e segurar a espingarda enquanto as mãos e os dentes colocam em operação a luminosa, isso tudo em cima da canoa, em silêncio e com agilidade para acertar a paca antes que virasse as pernas para cima e tivesse convulsões de riso diante de quadro tão ridículo, o que seria uma desmoralização para todo mundo. Assim, em nome da dignidade dos turistas, Tõe Lino se desencantou dela, que foi deixada de presente para o piloteiro, com a recomendação derradeira: "-é muito boa, a luz é ótima. Só não pode acender por causa que derrete". Deu um estojo para anzóis muito jeitoso, embora afrescalhado.
IV-VOLTA
Várias paradas para troca de pneus, estraçalhados nos buracos. Na 4a parada: “é pra mijar, pode guardar a tralha, gente!” (Izalmo já tinha posto o triângulo na curva, Vagão já tava trazendo o macaco e quase que Tiago, já com a chave de roda nos encaixes, afrouxa os parafusos de um pneu que parecia mais baixo para ir adiantando na hora de tirar).
Uma das trocadas de pneus aconteceu sobre formigueiro, fato só percebido mais tarde, quando a anta-cor-de-rosa começou a sentir que estava com o cu cheio de formigas GO-060 afora, pra cá de Piranhas, enfiava a mão dentro das calças, arrancava uma e jogava no banco de trás.
Isso aconteceu depois de acudirem a rodovia toda e enriquecer 5 borracheiros. Desconfiamos que se trata de tramóia deslavada entre a Anta e os borracheiros, coisa a ser investigada, já que a Anta conhecia todo mundo na estrada, e só por que ela passa ali (os mesmos 780 km) duas vezes por semana não explica tanta intimidade.
Com o atraso causado pelo Quifura, só chegaram a Iporá lá pelas 11 da noite, todo mundo já tinha jantado, era só ir procurar hotel. A Anta, faminta, resolveu segurar a cagada até ir dormir: depois que saiu o banheiro foi interditado e o hotel palco de protestos do Green-peace.
Foi neste hotel, em Iporá (café da manhã: ki-suco com apresuntado), que passamos a noite. Tinha 6 anos que não entravam mais de 2 hóspedes (alugando por hora um quarto), a moça da portaria ficou doida quando chegamos: "-troca os quartos, fiquem onde quiserem, vou passar a noite aqui na rua tomando conta dos carros....".
V-APÊNDICE
A)DEIXADOS
1-Contribuição para o folclore xinguano, a ser lembrado e escarafunchado por antropólogos do futuro em busca de explicações e origens: a lenda da anta-cor-de-rosa, bicho toicinhoso e barulhento, dado a excessos alcoolistas, acompanhado de ninhada de cacharas, tudo igualzinho e do mesmo tamanho, uns oito (vide o relato do Cachara-amestrado acima), e de outro bicho muito esquisito e pouco conhecido, só havendo consenso quanto ao cabelo, maravilhoso, por acaso parecido com o deste relator (foto abaixo, em foto de 2006, os do meio somos eu e TL, na porta de hotel em Canarana, tomando uma para acalmar do estirão até aí).
2-Anzóis e chumbadas enroscadas, riqueza mineral a ser explorada por algum gringo fidaputa em breve futuro, em TODOS os ramos submersos (e em alguns do seco, quando tentamos, com precisão cirúrgica de exército americano, lançar com carretilhas e molinetes tuviras, traíras, pedaços de matrinxãs e outras gostusuras para engambelar um jacaré que aceitou as iscas mas agradeceu os anzóis).
3-Jaú enfastiado de tanta matrinxã e traíra, morador no Poço do Russo, que até que tentou ser pescado, não foi não é culpa dele.
4-geração inteira de borrachudos com problemas de obesidade.
5-cozinheira com auto-estima altíssima. Aliás, fica sugestão de tratamento para moçoilas insatisfeitas, desejosas de se submeterem a procedimentos de cirurgia estética: se empreguem como cozinheiras no Kuluene por 5 dias, vão voltar se achando ma-ra-vi-lho-sas.
B)TRAZIDOS
Lições aprendidas:
1-A inveja é mesmo uma merda, principalmente de pescadores que não são da nossa turma.
2-Aberrações existem: Totó e a sogra, o lençol com as iniciais da sogra, os três últimos pedaços da paca escondidos, reservados para ela. Vai saber? Depois dizem que pescaria é que é coisa misteriosa.
3-Companheiro é companheiro, fedaputa é fedaputa (critérios algo subjetivos e flutuantes ao sabor das simpatias, em geral reforçados conforme o nível sanguíneo de Ligurita).
4-O rio se faz e refaz, vaporiza a areia, reapresenta os vapores, chuva e névoa, barrancos e praias, peixes, matas e bichos, no sempre, se o deixarem.
5-Tõe Lino (variante: Nino) tem como eixos mestres da linguagem as duas palavras organizadoras e definidoras: bosta e merda, de utilização farta e variada, com freqüência de enunciação diretamente proporcional ao nível de Farrista no papo.
abaixo: essa foto é de 2006. Dirceu (piloteiro gente boa), Edilberto e Tõe Lino. A canoa ficava parecendo almofada de alfinete.
Tabela – descrição dos quantitativos dos peixes apanhados
(esse relatório não é só merda).
Peixe
|
Caixa 1
|
Caixa 2
|
N° peças
|
Peso total
|
Peso médio (kg)
|
N°
|
Peso(kg)
|
N°
|
Peso(kg)
|
Bicuda
|
3
|
7
|
4
|
10
|
7
|
17
|
2,429
|
Cachara
|
2
|
16
|
1
|
11
|
3
|
27
|
9,000
|
Cachorra
|
3
|
13
|
7
|
18
|
10
|
31
|
3,100
|
Curvina
|
5
|
9
|
5
|
7
|
10
|
16
|
1,600
|
Jurupensem
|
8
|
6
|
6
|
5
|
14
|
11
|
0,786
|
Jurupoca
|
2
|
2
|
3
|
4
|
5
|
6
|
1,200
|
Matrinxã
|
12
|
18
|
11
|
17
|
23
|
35
|
1,500
|
Palmito
|
2
|
2
|
2
|
2
|
4
|
4
|
1,000
|
Piranha
|
14
|
15
|
11
|
12
|
25
|
27
|
1,080
|
Total
|
51
|
88
|
50
|
86
|
101
|
174
|
1,722
|
Obs: Na volta, quando fomos dividir os peixes, ainda tinha gente perguntando cadê os cacharas do Xingu. Abaixo: amostra dos peixes sendo separados e embalados para viagem.
Souvenirs:
1-colar de miçangas e penas de frango de granja tingidas (não pode lavar), peça indígena raríssima, a ser colocada em mostruário ou quadro na sala;
2-a MAIOR CACHORRA que o Mato Grosso já viu e que EU peguei (só menor, é claro - mas pouca coisa - que uma outra que DEIXAMOS escapar).
3-coleção de licenças de pesca de 3 estados, vários nomes, nunca usadas (fora a de Felipe, que mastigou a dele num acesso de raiva), que podemos alugar ou vender barato.
Impressões sobre os bichos
1-Tracajás desconfiados se enfiam na água antes que as marolas da canoa balancem os galhos onde tomam sol. Devem rogar pragas na turistama que não dá sossego.
2-Serrudos (vulgo "sovaco segura canoa"), que só nós e Paulo-Pito pegamos, ninguém queria comer, foram soltos com fama de imprestáveis, até alguém contar que eram carne finíssima, já estavam longe.
3-O rosário de borboletas amarelas (pieridae), atravessando o rio ou sobre os lameiros, brilhosas ao sol.
4-Macaco quebrando jatobás, sem machucar os dedos.
5-Quati que revisita a árvore morta pelo fogo, pau acima, meio sem rumo: era a sua casa?
6-Araras Canindés, azuis de peito amarelo, gritos mais visíveis que as cores;
7-Tucanos e araçaris, de um lado para o outro, o tempo todo, nunca satisfeitos com a margem onde estão.
8-Antas sistemáticas, com travessia de hora marcada nas madrugadas nevoentas;
9-Pacas burras - uma morreu.
10-Porcos cheirosíssimos, o aroma esverdeado cobrindo o rio a dezenas de metros.
11-Onças tímidas e de temperamento instável.
12-Jacarés que só parecem desconfiados: joga-se um peixinho e ficam íntimos.
O difícil retorno à civilização - lembretes necessários:
1-não cantar a cozinheira
2-não beliscar a bunda da cozinheira
3-não acordar a cozinheira à noite
4-treinar a não arrotar e peidar sem controle
5-não é necessário entrar nos botecos
6-voltar a usar a roupa apresentável, sem chapéu
7-companheiro continua companheiro, fedaputa continua fedaputa.
C)GLOSSÁRIO
(um gesto de caridade com possíveis leitores, já que nem todo mundo é pescador, íntimo que nem nós dos rios, dos bichos e da cultura xinguana, além de que o linguajar sofisticado aqui usado pode necessitar de traduções).
Cachara Peixe de couro, aparentado com o surubim do São Francisco, com manchas (listas) largas no lugar das pintas do surubim, menor e mais nadador na meia-água. Tem uns parasitas achatados, crustáceos, que se soltam do couro e caem no fundo da canoa quando é colocado no barco, que parecem pequenas arraias, com até 2,0cm de diâmetro, inofensivos.
“Dedos na argola” expressão do jargão de pescadores, de calão naturalmente rasteiro, aplicada aos pescadores que não pescam nada. Quando pescam, diz-se que “tiraram o dedo da argola”.
Exatoria órgão governamental responsável pela mensuração e pesagem dos peixes, para evitar que sejam pescados peixes com tamanho abaixo do limite legal ou em quantidade (cota medida em kilos) acima do permitido.
Farrista marca de cachaça de altíssima qualidade, importada da Abadia.
Ligurita outra marca de cachaça, mais honesta que as industrializadas.
Pescadores são os ditos "turistas" pelos locais, como notou o coronel, revoltado: “-nós é tudo frosô pra esses piloteiros.”
Poita gambiarra feita de pedaços de diferencial ou de eixo de veículos velhos, a que são soldados ferros para dar aspecto garranchento, e que serve de âncora. A corda que a prende fica atrás da canoa e pode ser causa de enroscos dos anzóis, conforme a (falta de) perícia do pescador.
Piloteiro Diz-se do responsável pela condução da canoa; escolher os pesqueiros; provimento de bebidas e tira-gostos, iscas, varas, iscar os anzóis, pescar, embarcar e desembarcar os peixes, limpar e dar o crédito aos turistas. São mais uma confirmação de que companheiro é companheiro, fedaputa é fedaputa. Piloteiros em ambas as categorias, para nossa sorte mais na primeira que na segunda. Cite-se a variante "pirangueiro", nome trazido das barrancas do São Francisco, não conhecido nem aplicado pelos locais, usado pelos turistas quem nem nós.
Secretária Cano soldado em posição vertical à lateral da canoa, em cujo oco se coloca a vara para pesca de espera. Forma de tratamento usada pelos turistas, muito bem intencionados, para se referirem à cozinheira.
Tracajá Cágado, maior que o do São Francisco. Desova nas praias na época da seca, quando os índios pegam e comem tudo, sem o menor prurido ecológico. Os ovos, oblongos (raramente redondos, nesse caso com aspecto idêntico ao de bola de pingue-pongue), com até uns 15 ou 20 gramas. Quando cozidos não adquirem consistência sólida como os ovos de galinha: mesmo cozidos por muito tempo permanecem (principalmente a clara) semi-líquidos e com consistência granulosa. A melhor maneira de comê-los é rasgando a ponta do couro (a casca mole) e chupando o conteúdo. Felipe achou que são mais oleosos e laxantes que o ovo de galinha. Sua coleta só é permitida aos índios: tem de pedir a eles uns se quiser experimentar, ou arriscar a ir para a cadeia.