segunda-feira, 25 de junho de 2012

Caçador

Este texto é de 1996.

A margem do dia
(réquiem para um caçador)

Marcelo Araujo Campos

                Chegara na tarde do dia anterior. Passando pelo açude, percebi os bandos de paturis na rasoura, revoaram quando o carro passou deixando poeira grossa parada no ar sêco e sem vento. O açude muito baixo e ainda longe as chuvas. No cerrado floradas de assa-peixe e pio de perdizes. Fins de julho.
                À noite, sentado na varanda, após a janta, limpei a espingarda em gestos lentos - tanto tempo! Havia manchas de ferrugem, pouco visíveis sob a lâmpada fraca, ásperas ao tato, e não as retirei de todo. Levaria a vinte-e-dois, mais leve, balinha miúda e difícil para caça a patos, mas de alcance (e desafio) maior. No céu vermelho do poente, li frio para a madrugada. Deixei uma blusa de mangas compridas junto da cama e uma capanga com balas pendurada na parede.
                Acordei com os galos, mas esperei seus cantos se tornarem repetidos para levantar. O frio esperado me gelou rápido as mãos e os pés enquanto me vestia no escuro. Encontrei o relógio e vi com dificuldade as horas - 3:50. Abri a janela e o ar da noite me fez juntar as mãos. Rumo ao banheiro. Bem desperto, alcancei fácil a espingarda e a capanga,  a blusa e  o chapéu. O metal frio era desagradável aos dedos  após contato com a água. Desci as escadas da cozinha sem barulho, comi os biscoitos deixados de véspera e saí para o tempo. Atravessando o curral, olhei para cima. A leste Órion bem visível, mas eu sabia que ela só estaria no meio do céu lá para outubro.
                Caminhava sem dificuldade pela trilha limpa, e naquele momento entendi perfeitamente porque meu avô rira quando, já caduco, certa noite eu lhe dissera que estava amanhecendo: pura alegria de estar vivo na madrugada, um prazer que ele conhecia. Foi a última vez que ouvi seu riso. Faleceu em meados de junho, quando o frio já chegou e aparecem raposas atropeladas nas estradas. Era um caçador, e essa minha homenagem: uma última caçada, suas técnicas aprendidas.
                O açude ficava a uma légua, e em passo rápido mas cauteloso, calças e botas molhadas de orvalho do capim, andei só atento ao caminho. Os pés insensíveis de frio. Mesmo na madrugada as flores do assa-peixe cheiravam. Aos poucos o céu passou de negro para azul escuro, e já havia uma faixa vinhosa no nascente. Cheguei às árvores da beira do açude, andando com cuidado na penumbra, difícil ver onde pisava. Reconheci um tapicuru numa clareirazinha e fui em sua direção. De lá a vista para o açude era limpa, eu esperaria sem pressa.
                Sentado num cupinzeiro, que a grama estava molhada, apoiei a espingarda na perna enquanto apanhava as balas - seis - e a carregava. Podia colocar mais de vinte balas, mas temia esquecer alguma. Melhor armar à medida do necessário. Saracuras três-potes cantaram no meio das taboas durante muito tempo, depois fizeram silêncio. Será possível que vai chover? Aguardavam também. Ali era a margem do dia.
                Às cinco e pouco havia claridade suficiente para discernir o verde escuro da  mata em frente. Me distraíra, olhando o nascente, de costas para o açude. Ao me voltar tive dificuldade em enxergar um bando contra o céu escuro. Alguma estrela ainda era visível. Cinco ou seis pares de asas sincopadas, vôo reto e firme, vinham em minha direção. Os soube, sem pensar, patos-do-mato, Cairina moschata conhecidos, auras metálicas. Vieram calados sobre a mata, curva suave para minha direita, descendo. Os acompanhava, apontando um dos que voava mais baixo, difícil ver a  mira no escuro. O dedo já pressionando o gatilho, mínimo a mais para o disparo.
                Atirei quando os tive de perfil. Houve um momento de indecisão, o bando oscilou entre uma ou outra direção de fuga. Patos enxergam mais cores que humanos, não deve ter sido difícil para eles me verem junto às arvores. Decidiram pelo leste. Eu errara e eles aceleraram as asas, ganharam altura e passaram direto, sem sons. Rumaram para o São Francisco. Nada a fazer. Me sentei, a arma já recarregada (nem percebi quando, com vem-e-vai automático, a recarregara). Olhei-os voar e sumir, pontos no céu clareando do leste. Meus olhos sorriam semi-cerrados. Um frio real, ajeitei o chapéu e voltei ao cupinzeiro. Minhas orelhas ardiam.
                Depois um bando grande de iriris pousou longe. Não me mexi. Pequenos demais. Quando outros patos apareceram eu já decidira esperar tê-los perto, se não pousados, para tentar outra vez. Como os primeiros, vieram de noroeste, desceram com elegância para pousar estabanados, também longe. Bichos desconfiados. Rumei para lá, me abaixando, até vê-los através das painas do brejo. Pisando no barro da margem, umidade nos pés, me apoiei numa árvore morta e tentei a mira. Atirar é o instante que já aconteceu. O pato revirou-se, agitado, e boiou enquanto o resto do bando decolou correndo sobre a água. Os iriris também voaram com assovios. O sol estava nascendo em  muitos vermelhos.
                O pato morto estava longe da  margem. Na curva do açude, onde passava a estrada velha, havia uma moita de bambus, morta quando a água do açude lhe cobriu as raízes. Caminhei até ela e quebrei uma vara longa, sem retirar os ramos. Ainda assim, sem opção: tive de descalçar as botas e retirar a roupa, água nos joelhos, tentativas tateantes trazendo a caça para a margem. Comparada ao ar, a água estava quente.
Com o pato nas mãos, abri suas asas, em arremedo de vôo, o pescoço pendente atrapalhando a fantasia. As peninhas do papo, claras, as do pescoço, negro-esverdeadas. Belíssima ave, os pés alaranjados, pequena carúncula no bico de serrilha delicada. Balancei-o, asas estendidas. Não havia nada além de maciez e entrega no relaxamento da sua morte. Seria a caça uma tentativa, invejosa, de voar, como se ter a ave me tornasse dono do seu vôo?
Novamente vestido e calçado, o frio me obrigou a me agachar depois de pendurar o pato pelos pés num galho. O sol da manhã ainda não aquecia. Fiquei mais um pouco, sombra comprida nas moitas, aguardando esquentar. O pato já estava meio endurecido, gotas de sangue seco nas penas da cabeça. Pombas-trocal solitárias passaram em direções variadas. Retomei a trilha com o sol às costas, calor bom. Pato pendurado na cintura, uns três kilos, me sujava um pouco. Enquanto caminhava retirava as balas não usadas.
                A mesma  morte que eu levara ao pato me será trazida um dia. Como ele, serei decomposto e extinto. Com estes pensamentos, olhei-o pendente, com o respeito que se tem pelos semelhantes. A finitude nos fazia iguais. Conquanto fosse triste saber que ele nunca voaria outra vez por causa de um gesto meu, reconhecer minha morte na dele sublimava meu sentimento de culpa. De qualquer forma, era a última vez.
                Havia fumaça na chaminé, subindo no ar da manhã. Abaixei os ombros  para passar debaixo da cerca, a espingarda contida na mão esquerda, a direita elevando o arame frouxo. A caminhada me fizera bem, e apesar do frio eu me sentia capaz de caminhar vários quilômetros. Na cozinha, joguei a caça sobre a pia e me servi do café, aproveitando o calor da xícara para aquecer os dedos.
                Depenei e sapequei as penugens restantes na pele segurando o pato pelo bico e depois pelos pés sobre as chamas do fogão de lenha, como muitas vezes fizera com codornas, perdizes, marrecos, patos, verdadeiros, rolinhas e outras caças de pena, quando criança, à luz da lamparina ou ao sol da manhã, quando meu avô chegava. Esse era um instante enquanto ele, analisando os ferimentos, discorria sobre técnicas e posições para o tiro, o momento melhor, cano esquerdo ou direito da cartucheira, estilos de arrancada das perdizes, os hábitos das aves, seus alimentos, pios e seus significados,  etc, etc... Trabalhei em silêncio.
Cortei os pés e a cabeça, abri pelas costas e limpei. Tinha ovos em formação.Temperei com sal e alho, deixei numa gamela coberto por peneira. Assei-o para o almoço e comi com arroz e tomates picados. Os ossos muito duros. Uma rêmige em bom estado guardei entre as páginas de um livro.
                À tarde apanhei as armas, desmontei, limpei, untei com óleo, remontei e guardei. Pela janela vi os coqueiros plantados por ele contra o céu, caía a tarde. Estava terminado. Voltei pela estrada de terra. Quando cheguei ao asfalto estava escurecendo, uma codorna atravessou a estrada. O vento já me levava os pensamentos, outros longínguos tempos. Acelerando rapidamente, virei para sudeste, costas para a estrada que apontava os restos do dia, viajei na noite.
                Na cidade ao chegar  pequenos torrões de barro se desprenderam das minhas botas e ficaram no asfalto, enquanto caminhei rumo à porta.

Abdução

Entrevista com um abduzido (fragmentos recuperados)

M. A. Campos

(...)
-eles são um tanto quanto indiferentes à nossa idéia de “sofrimento” ou de “sentimentos”. Não os vi manifestar qualquer emoção, e no entanto eles me induziam muito facilmente a estados de emoções variados sem explicação racional para aquele sentimento específico. têm uma tranquilidade dominadora, a-emotiva.

Está dizendo que a ausência de emoções é evidência de evolução?

-não sei porque isso seria evolução, até por que Sidarta Gautama já afirmava alguma coisa parecida nas bases do budismo, exortando a um estado de espírito parecido com o que percebi. Também estou dizendo que parecem conhecer todas as emoções e tão bem compreendem seus meandros e processos que as "desmancham". Se as vivem, é de forma sutilíssima, ao ponto de me parecerem “frios”, quando na verdade têm grau de percepção da condição de seres inteligentes e sociais e auto-consciência tão desenvolvidos que prescindem dessas manifestações e reações que chamamos “emotivas”. Talvez vejam nossos conflitos (e as emoções) como manifestação de alguma forma de imaturidade, de incompletude naquela auto-consciência, que para eles é natural. Conhecem todos os sentimentos, e conhecem também todos os processos que a eles levam. Talvez apliquem o que aqui fosse chamado de psicanálise absoluta (embora eu tenha ressalvas a esse termo, pois psicanálise é apenas uma das formas de entender as pessoas).

O senhor parece tê-los conhecido bem. Como se comunicavam? Eles falam português?

-comunicavam me transmitindo os sentidos das coisas, não seus símbolos, dos quais a língua é apenas mais um. Falam todas línguas, de todos os tempos e lugares (e não só usando as palavras, mas todas as acepções existentes ou já existidas) e nenhuma: sua comunicação é impossível de ser traduzida em qualquer língua, já que qualquer língua em que se traduza um sentido do que está sendo dito implica em perdas enormes de intrincados sentidos outros resultantes das formas como usam todas as palavras e sintaxes de todas as línguas, mais ou menos como fazemos com “trocadilhos”, elevados à enésima potência. O resultado é que transmitem idéias muitíssimo intrincadas e ricas em sentido. Qualquer tradução (na verdade redução a alguma língua) seria tão pobre como a lalação de um bebê tentando imitar o discurso de um sábio muitíssimo criativo falando sobre temas de alta complexidade usando palavras de mais de uma língua ao mesmo tempo, e com jargões técnicos e sutilezas de linguagem. Além do léxico, há os sentidos em muitos contextos possíveis, as variadas interpretações são todas colocadas simultâneamente, a “conversação” transmite idéias complexas e diversas ao mesmo tempo. Me transmitiam sentidos, e às vezes eu percebia nas falas o que só posso chamar de “trocadilho” para me referir a outros sentidos possíveis do que era transmitido. Uma fala de muitas dimensões, que eu percebia de forma muito rasa, pobre, em geral unidimensional, raramente intuindo uma Segunda dimensão, rarissimamente percebendo subjetividades e correlações outras do contexto que se desdobravam em muitas direções. Uma mesma frase poderia significar uma informação específica sobre mais de um assunto, uma saudação imbuída de ironia e de mensagens sobre o mútuo papel em alguma situação alheia, uma réplica e tréplica antecipada sobre as idéias que seriam possíveis para as várias respostas que se poderia esperar do interlocutor, perguntas sobre informações outras necessárias ao encadeamento dos raciocínios que estão sendo acompanhados, etc...

Se é assim, como o senhor percebeu que era assim? Quero dizer, se é tão eficaz mas ao mesmo tempo tão complexa, como o senhor conseguiu entender alguma coisa?

-Percebia que eles faziam “reduções” ao me transmitir as mensagens, tentavam ser extremamente simples e diretos, como fazemos com alguma criança muito jovem, escolhendo as palavras mais conhecidas para expressar idéias mais simples, tentando colocar as coisas ao meu alcance, inclusive quando tentavam explicar, como fiz acima, por exemplo, o que estavam dizendo. Pacientemente repetindo as mesma coisa de maneiras diversas, para que eu pudesse captar alguns dos sentidos possíveis. Mesmo essas “reduções” eram riquíssimas em sentidos, em algo que talvez se possa chamar de “maturidade emocional”. É claro que com isso fui aprendendo a aprender o que poderia estar sendo dito, mas era sempre uma situação de atenção extrema para mim qualquer comunicação. Às vezes relaxava e apenas desistia de entender, ficava com algum ponto e abria mão da complexidade. Ainda assim desenvolvi muito minha capacidade de expressão e de entendimento de frases. Aqui passo por “criativo”, quando na verdade estou apenas tentando ser sintético ao tentar passar o máximo de idéias para máxima eficácia de comunicação, lançando mão de correlações e interpretações insuspeitadas ou não habitualmente valorizadas. Também adquiri o mau costume de misturar palavras de mais de uma língua ao discurso, quando acho que ela é mais eficaz ou apenas soa melhor, já que mesmo os sons também implicam nuances de sentidos ou invocam com maior ou menor pertinência alguma sensação ou impressão específica que se queira causar no que ouve. Tenho impressão de que falam também invocando outras sensações de outros sentidos (tato, temperatura, olfato, paladar, etc...) para reforçar esses nuances, mas isso me escapava.

Tecnologia

Usam a massa das órbitas de acreção como combustível para obtenção de mésons mais estáveis ao ponto de serem usados como perturbadores do tempo e assim se locomoverem sem gasto de tempo (literalmente: não existe velocidade porque as locomoções são instantâneas).

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Xingu 2004 - mais relatos do Kuluene


Este é o segundo "relatório" de viagens ao Kuluene, e completa (por ora) a publicação dos textos sobre pescaria. Publico já, deixo para colocar fotos à medida do possível.


Xingu 2 – Setembro de 2004

De tudo que acontece ao nosso redor, só uma fração percebemos, do que percebemos menos lembramos, do que lembramos nem tudo se conta. Temos mais esquecimentos que lembranças, a maior parte de nossa memória são fragmentos do que passou. Esse relatório é um desfiar de fragmentos.

1-Cotas estouradas

Nota explicativa a este item:
A expressão originalmente se referia à quantidade máxima permitida de peixe, em quilos, por pessoa, e que na nossa volta não foi conferida. Nas palavras da fiscal do posto em Canarana, quando nos apresentamos para a fiscalização: “não precisa pesar, vocês são os únicos que fazem isso”. Neste relatório, as “cotas” abaixo citadas se referem a tudo que nos pareceu impressionante, excessivo, exagerado, despropositado ou absurdo. Vejamos:

1.1.            Tamanduás-bandeira atropelados. Só no trecho pra lá de Iporá havia 6. O tráfego intenso de caminhões de soja e as enormes extensões de desmatamento sugerem que em breve não vamos ver mais tamanduás, nem atropelados.
1.2.            Tizius atropelados por nós. Como já estava causando constrangimento, quando depois de Canarana, na estrada de terra, o vigésimo e tantos largou as penas no pára-choques, para diminuir a sem-graceza do dano ecológico demos uma amaciada: “esse não conta, foi suicídio”, com o que todos a bordo concordaram prontamente.
1.3.            Pochete de uma arroba do Sô José (só de Xampu eram duas “pets”), o que se torna ainda mais estranho quando se considera a escassez capilar que o assolava. No final das contas, até que faz sentido: os poucos fios restantes acabam sendo muito valiosos e hipercuidados. Vou criticar?
1.4.            Cagada do Herbert na beira do rio. Sem comentários.
1.5.            Telefonemas do Tiago para as moças, o chão batido ao redor da antena. Ficou com uma agilidade para conectar os fios e conseguir linha que era de se admirar. Acabou salvando todo mundo: quando íamos telefonar, era o único que fazia dar certo.
1.6.            A explicação do Sr José ao fone, doido para voltar para a folgança do à toa, mal falou o “alô”, já foi encerrando o assunto: “vou ter de desligar, tou no meio do mato, tem uma fila aqui querendo usar telefone...”.
1.7.            Ainda na ida, durante a viagem, o calor nos arredores da serra Caiapó, batendo fácil nos 45. De madrugada, no quarto do hotel onde passamos a noite, com o ar-condicionado estrebuchando nos parafusos, já tinha refrescado para uns 35.
1.8.            Jantar em Canarana: Izalmo e Wagão botaram em prática misteriosa superstição do “não pode desperdiçar  nada”. Ao final, Izalmo, a barriga brilhosa no calorão, ficou entalado de farofa e picanha até de madrugada. Acabou desperdiçando tudo no vaso para tentar dormir. Amanheceu meio verde, enfrentou a mesa do café da manhã de ponta a ponta, com uma passada bem marcada pelos ovos cozidos, seguida por visita honesta ao setor de bolos, biscoitos e afins, com os devidos queijos e manteigas, concluindo com dois copinhos duplos de suco de caju. O efeito foi sensacional: além do aumento de gazes, o caju adstringente deixa o botão afinado e sonoroso. Peidava em ré maior, com uma forcinha chegaria a sol, mas não arriscou, por causa que podia cagar nos colegas ou estufar a hemorróida em lugar de pouco recurso, pomada nenhuma nos 500 km ao redor.
1.9.            Iscas artificiais do Herbert, duas caixas que fariam a alegria do Joãozinho Trinta. Tinha de perereca com penas a minhoca pintadinha de purpurina, em gavetinhas com sortimento completo de formas, cores e texturas, tudo tapeante, comida de mentira pros bocós, cheias de despistadas espetosidades. De tudo se tira conclusões. No caso, ou peixe tem um gosto surpreendente, ou a fábrica pertence à Elke Maravilha. A falta que faz uma cumbuca de minhocas ou um novelim de minhocuçus...
1.10.        Costelas e buracos na MT020 (o “atalho” indicado pelo Fernando): ficamos parecendo parkinsonianos por umas duas horas. Até comentar a desgraça era arriscado: era tentar falar e mastigar a língua. A outra camionete não pulava: conforme explicação do Edilberto: “Pula não. Com o Izalmo, Wagão, Tiago e o cacharão do Tõe Lino, é muita carga”.
1.11.        Cagança do Tõe Lino quando buscou o cacharão, acima citado, na tarde do último dia, e depois ficou arrotando choco: “deixei para pegar hoje para levar peixe mais fresco...”, e ainda fez questão de fazer foto em pose do homem do rótulo da Emulsão Scott, com o cacharão na cacunda. Ficou bem parecido, provavelmente o homem do bacalhau fedia menos. Só não escutamos outras quarenta vezes a descrição da fisgada, da linha que quase arrebentou, dos garranchos que o peixe arrancou, do perigo da canoa que quase virou, do susto do piloteiro, da perícia da tomada de linha e do ajuste da carretilha e etc por quê viemos embora, ainda bem que era o último dia, se não ia todo mundo ficar de inveja recolhida, o que seria um perigo pelo risco de termos de contar mentiras maiores.

Pode-se dar um desconto com o entusiasmo após a embarcada do cacharão, quando lembramos que estávamos em certa abstinência de fisgadas que valessem a pena: a coisa estava feia, o dia inteiro para tirar duas piranhas, já estávamos gabando quando alguém pegava alguma: “peixe danado de gostoso”; “braba demais”, “uma ganchada de piranhas faz muita vista”, “num tem carne mellhor”, etc, etc.
Foi devido a essa carestia de peixes que, em conluio no meio do rio, eu, Tiago, Edil e Tõe Lino (já calibrados de Farrista e cervejas, que ficar no rio sem pescar nada e agüentando borrachudos é ótima desculpa para enxugar a cuia) acertamos providência para obter o desejado efeito de impressionar os colegas: o jeito era dois de nós irmos mais cedo para a pousada e pendurar os peixes do freezer no gancho de pesca do dia (todos os dias, quando os barcos chegam os piloteiros limpam os peixes e os colocam para escorrer nos ganchos do varal antes de guardá-los no freezer, varal esse que fica acima do ponto onde os barcos chegam, portanto bem à vista de todos que chegam).
Foi encher o varal e apeou o Sr José, muito feliz com dois peixotes que pegara, olhou o varal com a peixaiada lá, tudo durinho e com os bigodes quase quebrando de gelados, nem deu pela avacalhação, ainda elogiou: “que beleza, heim? eu também peguei dois...”. Pô!: coisa chata é quando a gente prepara palhaçada tão caprichada e o colega elogia ao invés de ficar com inveja. Um desaforo esse negócio de companheiro fino que não cai nas esparrelas, tive de tirar tudo do varal e voltar para o freezer sem o gostinho. O trabalho todo só serviu para fazer umas fotos e para dar um susto nuns filas-bóias que apareceram, viram a peixaria e saíram ressabiados...


2-Contribuições para o léxico e para a sociologia/antropologia das pescarias
Aqui incluímos não só as expressões idiomáticas colhidas no contexto da pescaria, mas também alguns comportamentos, buscando oferecer subsídios para compreensão das complexas interações que caracterizam o ambiente.

“No beiço da purga” não teve explicação razoável, pelo contexto pude deduzir que seria expressão idiomática são-franciscana, correlata a “está quase”, ou a “está por um fio”. Izalmo e Edilberto pareciam familiarizados com ela.

“Mais encaroçadas que costelas de sapo” eram as canelas do Tõe Lino após servirem de lanchonete pra tudo quanto qualidade de praga do Kuluene. Tõe Lino buzuntava-se com repelente de fabricação própria, xaropada verdosa de óleo para troca de fraldas (do neto Bernardo?) misturado com folhas amassadas de citronela, parecendo azeite de restaurante chique. Se Tiago não avisa, era arriscado alguém derramar na salada.
À noite, enquanto tomava tunda no truco, desesperado pelos tentos perdidos e esfregando as canelas encalombadas uma na outra, gabava a eficácia: “se não é o meu repelente...”. A beirada da orelha parecendo uma amora “de-vez”. Acabou esgotando as duas latas do repelente industrializado que tinha levado, trem venenoso, quando estava pescando, era passar e os peixes sumiam.

“Parecendo periquito na goiabeira” era o Herbert andando para lá e para cá em cima da canoa, experimentando alguma isca da coleção, e joga e recolhe linha, e solta a poita, e prende a poita, e vira pros lados, e vamos ver mais ali embaixo, agora vamos para a outra curva, ajunta os trem e vamos lá na corredeira, o piloteiro ganhando uma graninha suada...

De comportamentos típicos, citamos as batráquicas participações do Wagão e do Tiago ao redor da mesa de truco, um porre, avacalhando a roubalheira, um desaforo, não se podia roubar nas cartas, nos tentos, no grito que vinha logo um sapo com gritarias, risos de avacalhação e dedo-duranças. Preferível mil vezes o Sr José, sapo delicado conquanto de reações ligeiramente inoportunas. Quando Wagão tentou roubar no grito com uma trinca de cincos na mão e Tõe Lino chamou, só comentou “Nossa Senhora!”, virando o rosto com ar de pena. Wagão só pode lamentar: “pô!”. Bem feito para Wagão sentir o “efeito dicóco” no jogo. Aliás: “dicóco” é um dos nomes mineiros dos sapos do gênero Bufus, corruptela de “de cócoras”, alusão à posição agachada típica dos batráquios, bem ilustrada pela figura do Tiago agachado na cadeira coçando os calombos das canelas e de butuca no jogo.
Mas Deus castiga: Tiago, gerenciando arenga de Herbert e Tõe Lino, já tava cansado de mediar a história: “devo de ter jogado pedra na cruz”. Depois de assuntar as rabujentices e criancices, tivemos de concordar: deve de ter jogado mesmo, e acertou no saco. Para que servem os amigos? Para criar um espaço onde se possa ir além dos limites sem riscos de execração real (tornando a execração motivo de risos mais de cumplicidade que crítica). Peidar, beber, falar, fazer, ser rabugento, dar pitis, sem risco de deixar seqüelas, sem perda de confiança ou afeição: os amigos sabem dar o devido desconto, além do que o contexto facilita, conforme ilustrado pelo riso deliciado do Bismarck, um dos Metralhas, quarteto boa paz. Enquanto peidávamos, arrotávamos e falávamos merda, ele cutucava o Sô José, nos apontava satisfeitíssimo: “tá vendo, Zé?: isso é pescaria...”.

2.1-Mistérios e esquisitices

Não se anda pelo Xingu impunemente, no sentido de se poder passar sem experiências só possíveis nas matas das beiradas, praias ou águas do Kuluene, sem esquecer os contatos com os peixes já que, teoricamente, fomos lá para pescar, o que também aconteceu.

 

O peixe elétrico salvo pela ecologia de ocasião


Nossa canoa leva fácil o troféu de pesca mais esquisita: só tronco, arraia, uma coleção de tracajás (onde se inclui o caso do tracajá embriagado). E o caso mais esquisito: na curva onde os Tuiuiús andavam catando graveto (carregavam cada feixe de lenha que dava para fazer fogo de engrossar garapa), Tõe Lino, quebrando o tédio da conversa mole do nosso piloteiro pé-no-saco (que saudade da discrição do Dirceuzin), fisgou um trem, veio vindo um troço escuro, grosso, foi recolhendo enquanto tentávamos entender o que vinha lá: “é Sucuri” (eu sei, eu sei, tenham piedade: só mesmo a nossa vasta experiência de sertanistas para imaginar sucuri pega a anzol com isca de tuvira); “é pirarara” (o que é desculpável, dada a primeira vista da cabeçona fora d’água, embora a puxada fosse muito mole, longe da nervosia habitual das pirararas); “sei lá que que é isso? Parece uma tuvirona de uns 10 quilos” (quando começou a cair a ficha de que era um trem esquisito mesmo), até darmos com os quase dois metros de poraquê, vulgo “peixe elétrico”, ao lado da canoa, o que foi um susto e um espanto: tem de levar isso pros colegas verem.
Com esse espírito de solidariedade para com os colegas (e algum diáfano desejo de passar por grandes pescadores), arrastamos o bitelo pelo anzol até a praia, puxando pela linha com medo de botar a mão e tomar choque, quando começou a sair da água o anzol escapou e o bicho se encolheu um pouco, ficou no raso, vai-não vai embora, pedi a faca do piloteiro e pulei na areia, explicativo: a gente corta a coluna com a faca, secciona e desliga o bicho, num vai ter mais choque, é só levar, fui em frente, foi encostar a faca e tomar uma lambada de uns 300 volts no braço passando pela cacunda e saindo nos dedos do pé que subiram tudo uns em cima dos outros por dentro da botina, mas sertanista que é turista, quero dizer, que é sertanista, não entrega os pontos assim (sou lá besta de dar chance para aporrinhação dos colegas?), só entreguei a faca para o piloteiro voltando para a canoa na mesma velocidade que tinha decido, recuperando o fôlego e sem explicar muito o que tinha acontecido: “melhor deixar o bicho ir embora., deve de tá em extinção...” (o piloteiro depois veio informar que tem lagoa onde poraquê é praga, fiz que nem ouvi).
            Para minha sorte não havia câmara por perto que documentasse a experiência, mas quando Tõe Lino lamentou: “ah... devia de ter trazido a filmadora”, concordei: “é mesmo, heim?, que pena...”.
            Vale a pena uma explicação para atenuar o vexame: segundo o livro do Eurico dos Santos o choque de um poraquê grande (e esse não era nada miúdo) pode chegar a mais de mil volts: ainda bem que ele veio dando chilique e choque na linha de pesca enquanto era recolhido, se não eu não teria tido chance de despistar.
Depois de tudo acabado, na segurança ao redor das panelas da janta, Tõe Lino ficou dos mais experientes em estratégias para pegar o bicho, que ia fazer uma laçada com a corda, que era só passar no pescoço e dar uma apertadinha, que a corda que ele tinha era uma beleza de resistente e nem conduzia eletricidade, etc, etc... Sei...

O jaú enfeitado


A se dar crédito às explicações de Wagão e Edilberto para o monte de anzóis perdidos - todo dia na hora do almoço envinha um deles (ou os dois juntos) explicando: “os anzóis que eu perdi foi peixe grande demais, fisgou mas arrebentou a linha, carregou tudo...” - o já conhecido jaú (mencionado no relatório anterior) que mora no poço da saída das corredeiras já deve de ter mais piercing na cara que mocinha modernosa, dessas de shoping. Fosse pescado algum dia (dando chance às mentiranças de que existe mesmo), ia ser solto no susto e ainda ampliaria o folclore, com história do peixe veterano de pesca: só carretilha deve de ter duas penduradas nos beiços, foramente miudezas de anzol, encastol e chumbadas nas barbas. Bicho muito vistoso, como diria Amália, mais enfeitado que jumento de cigano.


Tracajá embriagado escapa de virar farofa

Na falta de peixes, os tracajás passaram a ser olhados com interesse. Um grandão, que causara mais esperanças de ser peixão bom até dar o ar da graça, foi levado à praia, recebeu dose de cachaça e foi largado lá. Pelo que sabemos, a cozinheira já o estava esperando, viu ele lá, meio besta, de barriga para cima, sem reação, achou que podia dar um prazo, quando voltou, o bicho já tinha sumido, sem nem dar tchau, foi dar um mergulho para refrescar o porre. Caso parecido ia acontecendo com um jacaré, que só não entrou na farra por causa do dó de desperdiçar cachaça com bichos tão mal agradecidos.


Roubar no truco causa surto psicótico

A tunda no truco e o choque epistemológico no Izalmo: “dois zapes? Uai? Mas num pode não, pode?”, só comparável ao estranhamento do frentista no posto de Canarana, quando Izalmo pagou em dinheiro e orientou: “entra com essa nota só quinta-feira”.

As estações do ano dentro d’água são outras: enquanto para nós no seco o verão está começando, dentro d’água está chegando o inverno: o outono aquático é lido nas folhas  que as primeiras enxurradas entregam à correnteza, o sinal para os peixes começarem a viagem. A maioria para o norte, nós para o sul.

A batuíra de esporão (Hoploxypterus cayanus), de máscara preta, na ponta da praia, areia úmida, batendo o pezinho, ensaia sozinha silenciosa catira, só ouvida pelos bichinhos que quer assustar.

Tralha a levar
Farinha
Varinha e anzóis para pescar lambaris
Minhocas e piabas congeladas
Anti-inflamatórios
Luva de borracha, isolante
Livro de pássaros e árvores (Ô ignorância meu deus...)

O problema do mijador e do cagador continua: há que organizar instruções para uma cagada mais confortável equilibrando-se na canoa.

Tio Hugo, na volta: “tenho de ir só para ver se isso tudo que ocês contam é verdade...” (está na cara que dispensa pescaria e que não quer ser convidado).

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Xingu 2002 - Relatos do Kuluene

Nota de apresentação
Este texto ficou na gaveta por 10 anos, circulando entre amigos e companheiros de pescarias e viagens. Finalmente publicado, ainda que em blog pessoal, acrescentei apenas fotos que não estavam disponíveis nas versões compartilhadas até agora. O fato de ser o primeiro texto neste blog se deve ao recente despertar de interesse no tema "Xingu": pareceu oportuno começar por ele.


Relatos do Kuluene

Guia de compartilhamento de experiências de e para pescadores



Autoria múltipla
(não temos tanta criatividade nem coragem para tudo que está aqui).

Relator:

Marcelo Araújo Campos

com auxílio direto na elaboração de
Tiago Gonçalves de Araújo, vulgo Anta-cor-de-rosa

Ilustrações:

Felipe, fotos e desenhos

Fotos também do Izalmo e a máquina maravilhosa

Palpites: todo mundo

acima: seria injusto não dar aos leitores uma idéia (ou lembrança) do ambiente para contextualizar os acontecimentos. Essa foto é de 2006. O kuluene continua lá.

 
I-QUESTÕES INICIAIS E EXPLICAÇÕES NECESSÁRIAS

Nota do relator
A versão dos fatos aqui registrada não se pretende mais verdadeira que outras. Aliás, como o escrito fica e o não escrito se esquece, é bem possível que, com o passar do tempo, esta versão passe a ser tida como “oficial”, os fatos tidos como “reais” por outras pessoas acabem esquecidos. O muito repetido às vezes substitui a memória. Fica o pedido de desculpas pelas eventuais injustiças cometidas com os companheiros, se no afã de contar nos deixamos levar pelas tendenciosidades.

Kuluene, Coluene, Culuene ou o quê?
Opção pela grafia nos mapas locais.

 

A turma

Os Valim, gente agradável, com o Sr Mário à frente e o Valimzim menor atrás (quando na estrada), sem pressa e sem raivas, sossegos.
Totó, candidato a membro mais exótico da expedição, embora o páreo seja duro: Paulo-Pito e o Jaú-Tabagista, digo, Silvinho-Tonelada, obeso professor de ginástica, que viajava em abstinência de nicotina, proibido pelos colegas de fumar a bordo, agüentando bravamente, olho no odômetro: "já rodamos uns 100 km: vamos dar uma paradinha?".
Izalmo Pancho com a máquina fotográfica descrita adiante.
Cleiton, que contratou um piloteiro cuiabano, cego pela catarata, contribuindo para abertura de novos canais no Kuluene, à força de barrigadas da canoa na areia, quando “esquecia” as curvas e passava direto.
Nino com extrema habilidade para encaixar muitos sentidos à palavra "bosta": pode ser xingamento, pode ser elogio (no estilo antecipa crítica fazendo crítica dura querendo dizer que é bom); pode ser espanto (que merda é essa?), etc, etc...



Quem pescou esse peixe?

Pergunta tão freqüente como difícil de ser respondida. Problema grave, o conceito de "pescou" é vago, ouvimos explicações diferentes, como sempre produzidas por interesses diversos:
a)quem é o proprietário da vara onde o peixe se pendurou;
b)quem iscou e jogou o anzol na água;
c)quem fisgou o peixe quando percebeu que a vara, na secretária, estava balançando;
d)quem recolheu a linha trazendo o peixe e
e)quem tirou o peixe da água.

Raríssimas vezes a mesma pessoa cumpriu mais de 3 desses itens, o item "e" quase sempre era o piloteiro, assim como o "b" e o "c".  Dessa forma, chega-se a algumas interpretações possíveis do que foi observado:
a)o único pescador era o piloteiro;
b)é só deixar que os próprios peixes se pescam, o piloteiro recolhe, pronto, turista é anexo que só atrapalha (na visão do piloteiro) ou só ajuda a escapar (na visão dos peixes).

É forte a suspeita de que seja mito a figura do turista-pescador, criação coletiva que só existe para deixar grana nas pousadas e engambelar os turistas que ainda vão embora felizinhos da vida, se sentindo provedores de alimento para as famílias e amigos e heróis da selva, matadores de peixes venenosos que infernizam a vida das populações do Kuluene.

Com tantos fatores de confundimento e interesses envolvidos, os relatores optaram por solução óbvia e que aliás não fica longe da verdade: eu pesquei ou nós deixamos escapar.

Resolvido o problema da autoria dos peixes embarcados e escapados, podemos avaliar como decorreram os demais fatos em derredor, sendo proposto olhar sistêmico, atento às sutilezas de ambiente tão sofisticado.


II-IDA

Ainda nos primeiros kilômetros Izalmo com seu chapéu Três-xíses, chique no úrtimo, combinando com o cinto e com a botina, foi abrir a janela para arejar um peido de Felipe, botou a cabeça para fora e o vento levou o chapéu, uma carreta que vinha atrás abriu a buzina, o motorista num sorrisão enquanto passava os 16 pneus por cima, "pára, pára, meu chapéu de cento e cinquenta reais, ainda nem recebi a fatura, couro de lebre". Quando pegou, parecia panqueca de gato rajado. Uma aba ficou aleijada, deu um ar de gangster bicha, reviradinha prá cima.

Felipe judiou de nós a viagem toda. O desconforto dos peidos foi piorado no último trecho, Canarana-Pousada, estrada de terra, umas 4 horas catando buraco, chocalhando, fedendo e, para completar, ouvindo o único disco que a disqueteira emperrada tocava, do Julio Iglesias. Deve ter sido karma, vou renascer de alma lisa.

Carro deixado em Canarana, espera no trevo, no boteco alegre, com as moças gente boa, bebendo cerveja: duas mornas, quatro quentes e acabou o estoque. Aliás foi nesse boteco/puteiro que pedi barbeador, ela veio com um cor de rosa e me acalmou: "-é unissex", com o que concordei fácil: "É mesmo: para mulher e bicha".

III-LÁ

Casos do dia a dia


Logo na chegada, Izalmo estava gripado: Tõe Lino se pendurou num pé de limão até conseguir derrubar dois limõezinhos meio murchos, espremeu num copo, acrescentou outros ingredientes, não aprovou, misturou outra vez numa copada, ia tentando acertar, passou cachaça, faltou cheiro verde, deixa ver o que tem nesse armário, dê cá o bicarbonato, mistura outra vez, foi indo, era pra ser uma colher e virou uma copada, Izalmo tomou agradecido. Quando acabou de virar tudo de gut-gut, engrunvinhando a testa e sem respirar para não vomitar, evêm Tõe Lino voltando, tinha ido buscar uma colherinha de café: "-toma só uma destas por dia". Não sarou, mas cagou uma lombriga que dava medida pra passar na exatoria e quase estourou a quota.

acima: Izalmo e Wagão nem sempre ficavam satisfeitos onde estavam: aproveitavam os deslocamentos para refrescar o calor com um ventinho, que ainda espanta os mosquitos.

Era uma bebeção! Como resultado, depois de tentativa minha de mostrar macheza oferecendo e bebendo ainda mais (dizem que eu perguntava: -"tio, quem faz essa pinga é meu avô?" "não, foi o bisavô" "então tem de ser dose dupla") tomei birra de cuia, principalmente das com um pescocinho onde fica outra dose. Para desespero do candidato a cirrosento, havia acabado o derradeiro prato de torresmos de piranha e peixes fora de medida (devidamente despistados em picadinhos), tive de me contentar com os queijos, salaminhos, palmitos, azeitonas e farofa de tatu. Um sacrifício!

Num dos pileques, à tarde, tive de ir ao rio nadar, o piloteiro concordou, apeamos na margem esquerda, do outro lado, largou eu e Felipe lá, distância segura para curtir o pileque e vomitar em paz, veio embora. Tirei a roupa, nadei, vomitei, tomei sol, melhorei um pouquinho, olhei o rio: uns cento e cinquenta metros até o outro lado, a correnteza forte, redemoinhos, piorados pela zonzura. Vamos lá. Nadei evitando abrir os olhos na água, assustar com alguma coisa: se amolecer de cagaço, bau-bau. Nem pensar em piranha, candiru muito menos. Subi ao barranco do outro lado meio bambo, e me dei conta: puta que pariu, as calças ficaram do outro lado. Fui até os piloteiros, expliquei a situação, me avisaram: tem de buscar, senão as capivaras e antas vão mastigar tudo, ‘tão puro sal. Fui, voltei com um ventinho no rosto, duas copadas de caldo de piranha à noite e estava salvo.

À noite, não era só eu quem estava nauseado, Wagão bateu na porta do quarto da cozinheira para pedir sal de frutas (explicação aceita sem contestações). Quando estava preparando a beberagem, aparece Cleiton: "-é bebida?" "não, remédio", "companheiro é companheiro: bota um prá mim também".

Quando estávamos em terra, o tempo todo alguém (embora Totó fosse o mais assíduo) indo até a cozinha, já tinha até trilha na poeira do chão, a cozinheira com a bunda roxa de beliscões, felicíssima, pratos e pratos do que quiséssemos.

Numa das ressacas, alguém solicitou socorro para aliviar o pom-pom-pom de enxaqueca pós-alcoólica, o coronel, prestativo, acudiu logo com Cibalena retirada do estojo de primeiros socorros dos tempos da ativa, data de validade, só percebida depois, novembro de 1976, uma benção!

Numa das noites houve ensaio de caçada de pacas, coronel à frente, com os piloteiros recrutados, depois do banho, escovado e pimpão, espingarda ao ombro. Durante a espera, não contavam com a presença de pintada nas imediações, na primeira brisa de catinga da bicha a caçada foi abortada, embora as explicações que nos tenham chegado de motivos do abortamento tenham sido diferentes: segundo o coronel, ele teria tido uma crise de consciência ecológica, além de que a lua cheia atrapalhava, e resolveram voltar aproveitando o frescor da noite, com uma paradinha para nadar (há quem diga que estava lavando a bunda, êita povo fofoquento). Nova tentativa posterior não foi tão vexamosa.

Sucesso garantido foi a pescaria do barco de Rambinho, Tiago (vulgo "Anta-cor-de-rosa) e este humilde relator, responsável pelo embarque de cachorra (Hidrolycus, segundo o cartaz de peixes pregado na parede da pousada) que sem nenhum exagero, ao ser recolhida retificou umas três curvas do rio - novo mapeamento por satélite mostrará área reta, onde ficava o Poço do Russo, facilmente identificada, que sugerimos seja batizada com nossa modesta lembrança de pescadores fodas. Os dentões tão aqui, de prova, a foto do heróico responsável anexa. Mesmo com a evidência de bravura e competência que tal captura evidenciou, registre-se termos ouvidos comentários de puro despeito quando chegamos: "cachorra não presta", "peixe besta, agarra qualquer coisa que joga perto", "espinho puro", "ocê come isso?". A inveja é uma merda. Trouxemos assim mesmo. Abaixo, em foto feita pelo Felipe: prova cabal de que nós num brinca.

acima: chegando do rio com a maior cachorra que o Kuluene já viu...

Ainda revoltados com a flatulência de Felipe na vinda, que continuava dando mostras de botão deseducado, botamos uns 40 ovos de tracajá cozidos sobre a mesa, sal, cerveja em lata geladinha, combinamos com Lu (a cozinheira, Flor do Kuluene - vide as fotos para verificação de como o senso estético também pode ser uma questão de oferta e demanda) para atrasar os demais tira-gostos, botamos o prato na frente de Felipe, faminto, não deu outra: comeu quase duas dúzias, os beiços lustrosos de óleo amarelo dos ovos. No outro dia já estava manso e polido, não peidava de jeito nenhum com medo de se borrar todo. Abençoados ovos de tracajá: virou Felipe-botão-de-lady.


Um episódio instrutivo: O cachara amestrado


Antes da descrição dos fatos como exatamente acontecidos, de maneira isenta e honesta, como tem de ser num relatório desta categoria, cabe explicar que o que aconteceu não foi planejado com antecedência. Queremos dizer que não somos de ficar judiando de turistas, apenasmente tivemos reação natural às desfeitas que sofremos, quando depois de pequenos contratempos, fatalidades que acontecem a qualquer pescador experiente - descritas a seguir - percebemos, como disse Tiago, -"esse povo tá rindo de nós".

Vejamos os antecedentes: duas curvas antes da barra do Sete de Setembro, pesquei (veja-se a questão da definição de autorias de peixes pescados, acima) um cachara que não passava vergonha, colocado no viveiro para um repouso. Ao chegar à curva do Xingu, na Sayonara, nos deparamos com o habitual congestionamento de barcos, incluindo participação organizada de umas onze canoas numeradas de turistas estrangeiros, pescadores profissionais sem dúvidas, a julgar pela categoria dos equipamentos e compenetração com que se dedicavam.

Logo na chegada, nosso piloteiro Rambinho resolveu de partir uma traíra, o que fez a poder de jeitosas facãozadas sobre a lata, espaventando até as garças que tavam num poleiro dois kilometros acima, quanto mais os peixes já desconfiados e com as bochechas feridas pelas fisgadas anteriores (os peixes do rio tomam fisgadas regulares desde a infância, motivo pelo qual se tornam levemente avessos a anzóis e barulho de canoa).

Com a pancadaria que parecia ensaio do Olodum de passagem pelo Kuluene, recebemos olhares, muxoxos e resmungos de recriminação da chusma toda, enfiamos a viola no saco e nos aquietamos, sem coragem nem para abrir uma cerveja, para não perturbar o sossego. Passamos então a levar a sério nosso papel de pescadores. Lamentavelmente, até o piloteiro, normalmente o único a lidar com a tralha com naturalidade, resolveu de pinchar a cabeça de uma matrinxã mas errou a lançada e arrebentou a linha, que se perdeu com tudo. A canoa de lado não perdoou: "dando comida desse jeito para os peixes, não vamos pegar nada", o que foi ouvido com agrado e riso pelos outros dezenove barcos ao redor, cada barco com pelo menos três pessoas.

Acalmada a situação, tentei fazer um lançamento que nos reabilitasse, mas cometi dois ligeiros equívocos: esqueci de destravar o molinete e de olhar para trás, resultando que fisguei a corda da poita e com a puxada só não capotei de costas por que o encosto da cadeira me segurou, sobrando o solavanco para o sovaco e os dedos na linha, quase arrancando as tampas dos dedos. Outro engraçado aproveitou: "técnica dessa de recolher a poita é novidade...", e toma "quá-quá-quá" geral, um vexame.

Para aumentar a auto-estima dos companheiros do nosso barco, resolvi pedir umas instruções da Anta: "ô Tiago, deixa eu ver essa carretilha lindosa, é importada, né? me ensina como é que usa...", o que até tava dando resultado, ele se animou, recolheu o piau que estava se decompondo intacto na água e passou a me explicar, foi demonstrar e fez uma cabeleira na linha (não era cabeleira, era uma peruca black-power) só faltando dar a bainha e colocar as mangas para ser usada como suéter. Uns vinte minutos de peleja, suor na testa, mordendo a língua, virando pra lá e pra cá a carretilha no colo, até entregar a rapadura, resolver tudo com o canivete e colocar outra linha.

A essa altura, já tinha gente nos barcos ao redor abrindo cerveja e se animando a fazer gracinhas com a nossa pagação de mico, até os que estavam longe viravam o pescoço, com ar de riso. Um bigodudo de peito estufado, com ares de autoridade e necessitado de se fazer notar, era dos que mais mostrava criatividade nos sacaneando, não pescava nada mas nem precisava: nós éramos diversão garantida, material para piadas e risinhos junto com a mocinha xexelenta que estava com ele.

Corri os olhos nos companheiros, tudo jururu, avaliei a situação, desde que havíamos chegado não vimos barco nenhum pescando nada, pensei: o que será que pode ser a glória máxima de um pescador? Peixe, é claro! Uai, peixe nós tínhamos, era só um, mas era.

Com muito jeito o cachara do viveiro foi convocado, passei a nossa linha da vara mais forte, sem anzol, por dentro da boca e por trás das guelras, fiz uma laçada, amarrei bem, com muito despiste escorreguei o peixe para a água, deixei nadar e comecei a recolher a linha, sapateando no assoalho da canoa: "-ôpa, ôpa, acho que enrosquei a linha...", o bigodudo escutou, olhou, nessas horas, quando alguém pesca, fica todo mundo olhando, não resistiu: "não é enrosco, não tá vendo que a linha tá andando? Tira daí, que é peixe", gritava, meio sem-graçoso, mas aproveitando para tamponar a inveja com ensinamentos de autoridade.

Tiramos o cachara da água, murmúrios gerais, "pegaram, pegaram...", e se acalmaram. Uns minutos de silêncio, o cachara é deslizado por trás da canoa outra vez para a água, devidamente seguro na coleira, esperamos para nadar para mais longe um pouco, a linha bem frouxa para ir tomando à vontade até dar uma distancinha, pronto, evem de novo, mais falas altas nossas: "-ô, Tiago, agora foi a sua vara: parece que tem uma piranha comendo a isca"; "piranha nada, é peixe e grande", etc, etc, lá vem o cachara, ameaçando umas rabanadinhas de protesto, reforçadas pelos nossos safanões na vara, sacudindo a linha, embarcado outra vez. Espanto na outra canoa perto, uma coroa emperiquitada atrás de nós custou a acreditar: "outro? Já? Que sorte, heim?"

E íamos naquela mumunha, botando e tirando o cachara da canoa. Foi ficando cada vez mais difícil fazer a coisa sem despertar suspeitas, a cada embarcada era necessário mais tempo para pararem de comentar - havia dúvidas se era o quarto ou quinto peixe pego, uns dois barcos mudaram despistadamente de lugar para lançar as linhas onde as nossas estavam - Tiago teve de pular na água umas duas vezes para nadar e eu aproveitava para soltar o bicho por trás dele, e sempre nós fazendo muito barulho a cada embarcada, e estapeando as cadeiras para simular rabanadas dos cacharas, bichões brabos.

A cada retirada, comentávamos, discutíamos o assunto: Seriam clones? Explica aí Tiago, zootécnico. Ou ninhada? Cachara anda em cardume? O barulho nosso, a pulação na água, nós nadando ao redor da canoa, a pulação "dos outros peixes embarcados" (na verdade, nossas botinadas no fundo da canoa) atraíram os outros? Vai saber? Pescaria é coisa misteriosa...

Houve um momento de interrupção, quando um barco de mauricinhos fisgou alguma coisa e aprontou a maior confusão, mandaram soltar a poita “-solta, solta, dá linha, acompanha, tem de cansar ele primeiro”, deram uma voltinha gloriosa, todo mundo olhando com inveja respeitosa e até algum alívio (“não são só eles que pegam”), o rapazinho papudo choferando a canoa e recolhendo a linha, rebocados pelo peixe, até parar ao lado (cúmulo do azar dele) da nossa canoa, bem à vista da nossa falta de piedade: “uai, cadê o peixe?“ “Será filhote dos nossos que veio ver os avós?“ Pescar isso dá cadeia...”, “covardia, sô...” “só noventa e cinco centímetros? Não tem de soltar?” “Soltamos um desses agorinha, ali em cima, cês podem fazer o favor de ver se tá com o nosso anzol na barriga e devolver? É anzol de estimação...”. As outras canoas, dedos na argola, riam alto, agora eram todos nossos aliados, transferiam as gozações e inveja para os coitados que embarcavam o peixim. O cúmulo foi quando oferecemos: “querem duas latas de cerveja em troca desse bagrim?”, ao que responderam putos: “temos uísque”, mas se calaram ante o incontestável: “nós tem é peixe!”. Glória total.

E continuamos a avacalhação, até "completar" oito cacharões devidamente escondidos sob a lona da canoa, o que repetíamos a cada vez: "levanta a lona, lá vai mais um". Não erramos nenhuma fisgada, trabalhamos as varas com uma eficiência e um auto controle de espantar, uma frieza e uma calma para trazer os peixes que comovia, tal nossa nobreza nos gestos de pescadores acostumadíssimos a esses encontros com peixões do sertão. Nos soltassem quinze dias no rio e se acabava o Kuluene como pesqueiro. Imagem de pescadores. Podíamos vender santinhos com nossas fotos para dar sorte ou assinar contrato de piloteiro com qualquer um ali, pagando acima da média pelos nossos prestimosos conselhos.

É claro que essa não é experiência que se tenha sem que fiquem seqüelas na platéia. Nunca vi tanto japonês com olhos arregalados, justo eles, que tanto almejam o sucesso dos humildes e sem bazófia, como o nosso. Um deles, de chapéu com mosquiteiro amarrado no alto da cabeça, só conseguia repetir "impressionante, impressionante...", fotografara os últimos 4 retornos do cachara puxado pela coleira, digo, peixes pescados, cada hora de um ângulo: atrás do motor, na frente da proa, atrás da poita, passando por debaixo da canoa, peixes fisgados contrariando todas as orientações de como pescar no Xingu, nós fazendo pose para ele, que não resistiu e pediu delicadamente para levantarmos o peixe para aparecer melhor, ele num tinha pescado nada, queria uma foto...

Como a nossa foi a única canoa na história do Xingu, à frente de numerosas testemunhas, a pescar 8 cacharas em menos de 2 horas no mesmo lugar e contra todas as orientações tidas como normas de pescaria (não fazer barulho, não afrouxar a linha quanto fisgar, trocar as iscas, cachara não anda em cardume, etc, etc...), passamos a ouvir, de início, comentários, que respondíamos como se não estivessem perguntando, mas comentando também: "bom mesmo é lá no Russo, lá nós pegamos muito mais, cada Jaú e Pirarara e Filhotes. Numa das fisgadas nem precisamos ligar o motor para voltar: ela desembestou rio abaixo e nos rebocou, quando chegamos no deck da pousada a embarcamos, deu umas duas horas de economia de combustível, com o barco carregado. Viemos com os pés nas costelas de um Jaú que parecia um tronco, o rabão teve de ficar de fora, a barrigada deu almoço e janta para a urubuzada toda da região, tinha 2 matrinxãs de medida no bucho, fora as miudezas de piranha e piauzinhos de palmo e chave, que aproveitamos para isca.". Tudo dito em tom de grande humildade, a coisa mais natural do mundo, e dando a entender que eles também deviam ter pescado muito mais que nós, turistas desajeitados.

Depois de tal demonstração de sabedoria, acompanhada da acachapante lição que haviam presenciado, fotografado e discutido sobre como encher a canoa de cacharas, alguns passaram a pedir sugestões, ouvindo nossos conselhos experientes. Com isso, ficou acertado o encaminhamento da flotilha de japoneses para o Poço-do-Russo, três horas de barco rio acima, com nossas piedosas explicações de que "só pega com isca branca, viva, associada a minhocas (caríssimas, só encontradas por encomenda em Canarana, a 110 km e 400 lombadas pela estrada de terra, só na ida) e entre meia noite e uma e trinta da manhã".

Lamentavelmente esse encaminhamento teve repercussão inimaginada: a implicância que os Kalapalo, que estavam tentando caçar tracajás (em desova) nas praias à noite, passaram a ter dos estrangeiros, vistos a noite toda rumo ao Poço-do-Russo, assustando os tracajás, impedindo a caça, deixando os índios famintos e putos da vida. Do deck da pousada, à noite, apreciando o movimento e bebericando cervas, já sabíamos: era passar uma canoa e vinha a gritaria dos índios xingando no escuro: “êvem de novo, praga de japonês...”.Aliás, registre-se em defesa dos índios, de quem se diz ser tudo ladrão. Ao que sabemos, não roubaram nada. A rede que sumiu foi Totó que fez doação para os índios, parentes de Marieta Coca-Cola, digo, Kalapalo. Portanto, Xavantes, Javaés, Kalapalos, baê! Sentimos muito pelos tracajás assustados.

Houve outras seqüelas, menos vistosas, como a revolta dos outros piloteiros com nossa engambelação, quando souberam pelo nosso piloteiro a explicação real, após terem ouvido dos turistas cobranças e mais cobranças para irem buscar iscas brancas, irem a outros pesqueiros, uma falta de sossego, queremos ir ao Poço do Russo, dois piloteiros passaram a noite em claro pajeando japonês renitente que queria cachara.

Já na volta, fomos informados de que o bigodudo, depois de rever os conceitos que tinha de pescaria, trocou de hobby, virou colecionador de selos, dizem que já tem uma coleção grande, só não tolera selo temático, desses com foto ou desenho de peixe, coisa de um mal gosto horroroso e que devia ser proibida, ele inclusive já mandou carta para o senado sugerindo projeto de lei: selo só de heróis nacionais, Sílvio Santos, Duque de Caxias, Tamandaré (esse com dúvidas, o nome lembra nome de peixe, Floriano Peixoto é sem chance).

Dois barcos se recusaram a pescar, passaram a só tirar foto, montaram uma ONG de defesa dos cacharas, estão faturando com pescadores ecológicos, que só vão lá para ver o rio e ouvir a história de criminosos como nós, assassinos de peixes. Desconfiamos que foram eles quem nos denunciaram ao posto em Barra do Garças, informados de que dois turistas haviam estourado a cota em mais de duzentos kilos.

A tecnologia xinguana


Para os (principalmente as) que reclamaram de falta de contato, vale explicar como foi um telefonema da Pousada Xingu para o mundo. Depois de esperar o gerente da pousada chegar e se dispor a explicar o processo de chamadas, ensinar o caminho e ligar o gerador de eletricidade para tentar carregar a bateria do celular; pela busca das conexões nos armários da pousada; viajar da pousada ao ponto mais alto, no meio do mato, onde fica a antena, por estrada com areia afundando as botas ao apear do carro; tentar as conexões em todos os telefones disponíveis; tatear tentando fazer os encaixes dos fios da antena e do conector no telefone, no escuro, tentar ouvir no meio da chieira se está funcionando, tentar outra vez, ouvir alguma coisa, falar sem saber se está sendo ouvido, enquanto aumenta o lucro da telefônica e dos mosquitos e borrachudos, com risco de deixar cair o telefone, estapeando a testa, as orelhas, os braços, coçava as costas, o pescoço, etc, etc...

Isso para um telefonema. Tive que tentar outros três. Quando voltamos da ida ao orelhão (a minha orelha, inchada de picadas) o churrasco já tinha esfriado. De volta, escuta-se: "-você não ligou para mim!".
Beber na canoa é um problema, mijar um risco, cagar na praia um atraso. Discutimos o projeto de privada de bordo, com barra para apoio dos braços e abertura direta para a água, inclusive com duchinha higiênica com caninho contra a corrente, é só mover a canoa que a água reflui pelo cano, outra saída a favor da corrente para ir lavando a privada. Falta registrar patente, lembrando os argumentos de segurança e alívio pra bunda ficar livre dos borrachudos. Antes que façam pouco-caso do nosso potencial como inventores, vale lembrar duas amostras de mercadorias vendidas no mercado e que tivemos oportunidade de apreciar em operação durante a estada:

1-Máquina fotográfica do Izalmo, com inconvenientes, coisinhas bestas, por justiça aqui relatadas para não sermos acusados de omitir imperfeições ridiculamente pequenas e que em nada denigrem a babosa maravilha: são necessárias algumas pilhas - carregamento com uma proporção de 2 pilhas por foto feita (ou seja, com a ninharia de 180 pilhas AA usa-se com tranqüilidade a máquina, apenas interrompendo a cada foto para a troca de pilhas, com a colaboração compreensiva dos bichos, tracajás, e peixes que estão posando sem pressa nenhuma - turista é turista), são recomendados dois piloteiros pra carregar as baterias de carro, 12 volts, com os devidos adaptadores (quando no rio) ou (quando em terra) de fio de extensão (mínimo 20 metros), 4 conectores diferentes, um vídeo cassete com gambiarra e um técnico em gambiarras várias. As fotos são boas.

2-Lanterna do Tõe Lino, peça luxenta, do estrangeiro, foi apresentada pelo proprietário, à noite, enquanto, com a lixa de unhas da cozinheira solícita, desbastava componente que sofrera hiperaquecimento. Logo se percebeu que era de operação simples e muito prática: com uma mão, segura-se a dita cuja, com a outra maneja-se o foco, com os dentes (variante: com o pé) tenta-se ajustar a lâmpada, apertando o conjunto todo no peito, com jeito para não inviabilizar o olhar sobre o efeito que se está tentando conseguir. Talvez isso fosse facilitado com o piloteiro (pau para toda obra) segurando um espelho, por cima, para dirigir o facho de luz. Foi cogitada para ser usada em expedição pacacida, mas após demoradas e sérias considerações, turbinadas por cuiadas de Ligurita, chegou-se à conclusão de que talvez não fosse o equipamento mais adequado, dada a ausência entre os colegas da expedição de ginasta ou iogue capaz de passar os pés por cima dos ombros, por trás, para ajustar o botão e segurar a espingarda enquanto as mãos e os dentes colocam em operação a luminosa, isso tudo em cima da canoa, em silêncio e com agilidade para acertar a paca antes que virasse as pernas para cima e tivesse convulsões de riso diante de quadro tão ridículo, o que seria uma desmoralização para todo mundo. Assim, em nome da dignidade dos turistas, Tõe Lino se desencantou dela, que foi deixada de presente para o piloteiro, com a recomendação derradeira: "-é muito boa, a luz é ótima. Só não pode acender por causa que derrete". Deu um estojo para anzóis muito jeitoso, embora afrescalhado.

IV-VOLTA

Várias paradas para troca de pneus, estraçalhados nos buracos. Na 4a parada: “é pra mijar, pode guardar a tralha, gente!” (Izalmo já tinha posto o triângulo na curva, Vagão já tava trazendo o macaco e quase que Tiago, já com a chave de roda nos encaixes, afrouxa os parafusos de um pneu que parecia mais baixo para ir adiantando na hora de tirar).

Uma das trocadas de pneus aconteceu sobre formigueiro, fato só percebido mais tarde, quando a anta-cor-de-rosa começou a sentir que estava com o cu cheio de formigas GO-060 afora, pra cá de Piranhas, enfiava a mão dentro das calças, arrancava uma e jogava no banco de trás.

Isso aconteceu depois de acudirem a rodovia toda e enriquecer 5 borracheiros. Desconfiamos que se trata de tramóia deslavada entre a Anta e os borracheiros, coisa a ser investigada, já que a Anta conhecia todo mundo na estrada, e só por que ela passa ali (os mesmos 780 km) duas vezes por semana não explica tanta intimidade.

Com o atraso causado pelo Quifura, só chegaram a Iporá lá pelas 11 da noite, todo mundo já tinha jantado, era só ir procurar hotel. A Anta, faminta, resolveu segurar a cagada até ir dormir: depois que saiu o banheiro foi interditado e o hotel palco de protestos do Green-peace.

Foi neste hotel, em Iporá (café da manhã: ki-suco com apresuntado), que passamos a noite. Tinha 6 anos que não entravam mais de 2 hóspedes (alugando por hora um quarto), a moça da portaria ficou doida quando chegamos: "-troca os quartos, fiquem onde quiserem, vou passar a noite aqui na rua tomando conta dos carros....".


V-APÊNDICE

A)DEIXADOS

1-Contribuição para o folclore xinguano, a ser lembrado e escarafunchado por antropólogos do futuro em busca de explicações e origens: a lenda da anta-cor-de-rosa, bicho toicinhoso e barulhento, dado a excessos alcoolistas, acompanhado de ninhada de cacharas, tudo igualzinho e do mesmo tamanho, uns oito (vide o relato do Cachara-amestrado acima), e de outro bicho muito esquisito e pouco conhecido, só havendo consenso quanto ao cabelo, maravilhoso, por acaso parecido com o deste relator (foto abaixo, em foto de 2006, os do meio somos eu e TL, na porta de hotel em Canarana, tomando uma para acalmar do estirão até aí).




2-Anzóis e chumbadas enroscadas, riqueza mineral a ser explorada por algum gringo fidaputa em breve futuro, em TODOS os ramos submersos (e em alguns do seco, quando tentamos, com precisão cirúrgica de exército americano, lançar com carretilhas e molinetes tuviras, traíras, pedaços de matrinxãs e outras gostusuras para engambelar um jacaré que aceitou as iscas mas agradeceu os anzóis).

3-Jaú enfastiado de tanta matrinxã e traíra, morador no Poço do Russo, que até que tentou ser pescado, não foi não é culpa dele.

4-geração inteira de borrachudos com problemas de obesidade.

5-cozinheira com auto-estima altíssima. Aliás, fica sugestão de tratamento para moçoilas insatisfeitas, desejosas de se submeterem a procedimentos de cirurgia estética: se empreguem como cozinheiras no Kuluene por 5 dias, vão voltar se achando ma-ra-vi-lho-sas.

B)TRAZIDOS


Lições aprendidas:

1-A inveja é mesmo uma merda, principalmente de pescadores que não são da nossa turma.

2-Aberrações existem: Totó e a sogra, o lençol com as iniciais da sogra, os três últimos pedaços da paca escondidos, reservados para ela. Vai saber? Depois dizem que pescaria é que é coisa misteriosa.

3-Companheiro é companheiro, fedaputa é fedaputa (critérios algo subjetivos e flutuantes ao sabor das simpatias, em geral reforçados conforme o nível sanguíneo de Ligurita).

4-O rio se faz e refaz, vaporiza a areia, reapresenta os vapores, chuva e névoa, barrancos e praias, peixes, matas e bichos, no sempre, se o deixarem.

5-Tõe Lino (variante: Nino) tem como eixos mestres da linguagem as duas palavras organizadoras e definidoras: bosta e merda, de utilização farta e variada, com freqüência de enunciação diretamente proporcional ao nível de Farrista no papo.

abaixo: essa foto é de 2006. Dirceu (piloteiro gente boa), Edilberto e Tõe Lino. A canoa ficava parecendo almofada de alfinete.

 
Tabela – descrição dos quantitativos dos peixes apanhados
(esse relatório não é só merda).


Peixe
Caixa 1

Caixa 2


N° peças

Peso total
Peso médio (kg)
Peso(kg)
Peso(kg)
Bicuda
3
7
4
10
7
17
2,429
Cachara
2
16
1
11
3
27
9,000
Cachorra
3
13
7
18
10
31
3,100
Curvina
5
9
5
7
10
16
1,600
Jurupensem
8
6
6
5
14
11
0,786
Jurupoca
2
2
3
4
5
6
1,200
Matrinxã
12
18
11
17
23
35
1,500
Palmito
2
2
2
2
4
4
1,000
Piranha
14
15
11
12
25
27
1,080
Total
51
88
50
86
101
174
1,722

Obs: Na volta, quando fomos dividir os peixes, ainda tinha gente perguntando cadê os cacharas do Xingu. Abaixo: amostra dos peixes sendo separados e embalados para viagem.


Souvenirs:

1-colar de miçangas e penas de frango de granja tingidas (não pode lavar), peça indígena raríssima, a ser colocada em mostruário ou quadro na sala;

2-a MAIOR CACHORRA que o Mato Grosso já viu e que EU peguei (só menor, é claro - mas pouca coisa - que uma outra que DEIXAMOS escapar).

3-coleção de licenças de pesca de 3 estados, vários nomes, nunca usadas (fora a de Felipe, que mastigou a dele num acesso de raiva), que podemos alugar ou vender barato.

Impressões sobre os bichos


1-Tracajás desconfiados se enfiam na água antes que as marolas da canoa balancem os galhos onde tomam sol. Devem rogar pragas na turistama que não dá sossego.

2-Serrudos (vulgo "sovaco segura canoa"), que só nós e Paulo-Pito pegamos, ninguém queria comer, foram soltos com fama de imprestáveis, até alguém contar que eram carne finíssima, já estavam longe.

3-O rosário de borboletas amarelas (pieridae), atravessando o rio ou sobre os lameiros, brilhosas ao sol.



4-Macaco quebrando jatobás, sem machucar os dedos.

5-Quati que revisita a árvore morta pelo fogo, pau acima, meio sem rumo: era a sua casa?

6-Araras Canindés, azuis de peito amarelo, gritos mais visíveis que as cores;

7-Tucanos e araçaris, de um lado para o outro, o tempo todo, nunca satisfeitos com a margem onde estão.

8-Antas sistemáticas, com travessia de hora marcada nas madrugadas nevoentas;

9-Pacas burras - uma morreu.

10-Porcos cheirosíssimos, o aroma esverdeado cobrindo o rio a dezenas de metros.

11-Onças tímidas e de temperamento instável.

12-Jacarés que só parecem desconfiados: joga-se um peixinho e ficam íntimos.


O difícil retorno à civilização - lembretes necessários:

1-não cantar a cozinheira
2-não beliscar a bunda da cozinheira
3-não acordar a cozinheira à noite
4-treinar a não arrotar e peidar sem controle
5-não é necessário entrar nos botecos
6-voltar a usar a roupa apresentável, sem chapéu
7-companheiro continua companheiro, fedaputa continua fedaputa.


C)GLOSSÁRIO

(um gesto de caridade com possíveis leitores, já que nem todo mundo é pescador, íntimo que nem nós dos rios, dos bichos e da cultura xinguana, além de que o linguajar sofisticado aqui usado pode necessitar de traduções).

Cachara        Peixe de couro, aparentado com o surubim do São Francisco, com manchas (listas) largas no lugar das pintas do surubim, menor e mais nadador na meia-água. Tem uns parasitas achatados, crustáceos, que se soltam do couro e caem no fundo da canoa quando é colocado no barco, que parecem pequenas arraias, com até 2,0cm de diâmetro, inofensivos.

“Dedos na argola”  expressão do jargão de pescadores, de calão naturalmente rasteiro, aplicada aos pescadores que não pescam nada. Quando pescam, diz-se que “tiraram o dedo da argola”.

Exatoria        órgão governamental responsável pela mensuração e pesagem dos peixes, para evitar que sejam pescados peixes com tamanho abaixo do limite legal ou em quantidade (cota medida em kilos) acima do permitido.

Farrista        marca de cachaça de altíssima qualidade, importada da Abadia.

Ligurita        outra marca de cachaça, mais honesta que as industrializadas.

Pescadores   são os ditos "turistas" pelos locais, como notou o coronel, revoltado: “-nós é tudo frosô pra esses piloteiros.”

Poita              gambiarra feita de pedaços de diferencial ou de eixo de veículos velhos, a que são soldados ferros para dar aspecto garranchento, e que serve de âncora. A corda que a prende fica atrás da canoa e pode ser causa de enroscos dos anzóis, conforme a (falta de) perícia do pescador.

Piloteiro      Diz-se do responsável pela condução da canoa; escolher os pesqueiros; provimento de bebidas e tira-gostos, iscas, varas, iscar os anzóis, pescar, embarcar e desembarcar os peixes, limpar e dar o crédito aos turistas. São mais uma confirmação de que companheiro é companheiro, fedaputa é fedaputa. Piloteiros em ambas as categorias, para nossa sorte mais na primeira que na segunda. Cite-se a variante "pirangueiro", nome trazido das barrancas do São Francisco, não conhecido nem aplicado pelos locais, usado pelos turistas quem nem nós.


Secretária    Cano soldado em posição vertical à lateral da canoa, em cujo oco se coloca a vara para pesca de espera. Forma de tratamento usada pelos turistas, muito bem intencionados, para se referirem à cozinheira.

Tracajá          Cágado, maior que o do São Francisco. Desova nas praias na época da seca, quando os índios pegam e comem tudo, sem o menor prurido ecológico. Os ovos, oblongos (raramente redondos, nesse caso com aspecto idêntico ao de bola de pingue-pongue), com até uns 15 ou 20 gramas. Quando cozidos não adquirem consistência sólida como os ovos de galinha: mesmo cozidos por muito tempo permanecem (principalmente a clara) semi-líquidos e com consistência granulosa. A melhor maneira de comê-los é rasgando a ponta do couro (a casca mole) e chupando o conteúdo. Felipe achou que são mais oleosos e laxantes que o ovo de galinha. Sua coleta só é permitida aos índios: tem de pedir a eles uns se quiser experimentar, ou arriscar a ir para a cadeia.