quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Ver-dade

dos idos de 2004, tempos de estudo de psicanálise e dos "atos falhos", recupero:


Ver dade


Há em mim palavras de tocaia,
me esperam e me acham
me lembram: não sou meus pensamentos
Pelo furo da boca me escapo.

Meus nadas não terminam
Necessito esquecimentos e desvios
Nos deslizes da voz me falo
com sotaque de névoa.

De lugar onde existem minhas linhas
Com as pontas dos dedos roço alíngua
Quando redescubro as palavras
É a mim que re-descubro

Ao cansaço da dicção que tropeça
Atos exatos desato em centelha
De escândalo e gozo, pedra ao avesso
No princípio sou o ato

Minha verdade não cabe em sons
Pelas frestas se anuncia
Ansioso por quem me descubra
Ofereço janelas na fala

Não é o silêncio que me ameaça
E nem meu corpo se cala
Às portas do real entrego
troiano cavalo de vidro

Acontece nesses descaminhos
Confessar meu destino de chama
Dar-me às levezas, não jurar por palavras
Meus segredos num copo d’água

Minha carne é feita em alguma língua
Dos verbos aos tendões
A poesia, ato falho ou delírio
Quem a assina não a sabe

Com palavras além de mim me desvelo
Compartilhado em clarões de relâmpago
Concretamente peço, perceba-me:
meu nome é seqüência de letras.

(Palavras também se emprestam: “Preciso do desperdício das palavras para conter-me”[1])





[1] Manoel de Barros (1993). O livro das ignorãnças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3a edição,  pg 43.