quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Tio Guilhermino no velório do Vô Pedro Lino


Esse é um caso contecido.

Era o velório do Vô Pedro (Pedro Lino Vieira, irmão dos tios Doro e Guilhermino).

Vô Pedro ficou caduco cedo, viveu muitos anos já sem conhecer mais ninguém, nos últimos 3 anos praticamente não saía da cama, na sua casa, na Faustino Teixeira, em Bom Despacho. Quando morreu, a morte foi recebida com tristeza tranquila.

O velório estava indo, as visitas ainda chegando. A casa pequena, a sala muito cheia. Nós de casa fomos pro quintal.

Num dos tamboretes, Tio Guilhermino, tranquilo, pitava, acolhia os pêsames. Num dos momentos de calma, tomei coragem de perguntei pra ele, o tom mais respeitoso que pude: “-Tio, o senhor, é mais velho, o que que aprendeu na vida, e acha que nós, os mais novo, devia de ficar sabendo?”

Ele levantou os olhos, meio surpreso, sem mudar a calma: “-Boa pergunta... Vou responder ocê. É assim: num toma o sereno da noite, num perde o da madrugada, e num tema com ninguém.”.

“Nossa, tio! Trem difícil. Num temar com ninguém?”

“É. Procê ver: cresci na bêra do São Francisco, moro lá, vejo aquele rio no diário, já vai fazer uns 80 anos. Fora o que os antigo já viro e contaro. Vejo o rio correndo prá lá. Aparece um de fora e fala: “não, Guilhermino, o rio corre é pra cá”. Vou teimar? Num foi lá ver. Às vez virou...”

“Entendi, tio. Brigado. Num garanto dar conta disso não, mas vou espalhar... O senhor me dá um tiquim da Farrista. Brigado.”.

Acompanhei o enterro e carreguei o caixão do Vô Pedro até o cemitério velho de Bom Despacho. Tio Bino (outro irmão do Vô Pedro) tava lá, muito emocionado, se despediu. Contou muitos casos. Ôtra hora eu conto.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Ver-dade

dos idos de 2004, tempos de estudo de psicanálise e dos "atos falhos", recupero:


Ver dade


Há em mim palavras de tocaia,
me esperam e me acham
me lembram: não sou meus pensamentos
Pelo furo da boca me escapo.

Meus nadas não terminam
Necessito esquecimentos e desvios
Nos deslizes da voz me falo
com sotaque de névoa.

De lugar onde existem minhas linhas
Com as pontas dos dedos roço alíngua
Quando redescubro as palavras
É a mim que re-descubro

Ao cansaço da dicção que tropeça
Atos exatos desato em centelha
De escândalo e gozo, pedra ao avesso
No princípio sou o ato

Minha verdade não cabe em sons
Pelas frestas se anuncia
Ansioso por quem me descubra
Ofereço janelas na fala

Não é o silêncio que me ameaça
E nem meu corpo se cala
Às portas do real entrego
troiano cavalo de vidro

Acontece nesses descaminhos
Confessar meu destino de chama
Dar-me às levezas, não jurar por palavras
Meus segredos num copo d’água

Minha carne é feita em alguma língua
Dos verbos aos tendões
A poesia, ato falho ou delírio
Quem a assina não a sabe

Com palavras além de mim me desvelo
Compartilhado em clarões de relâmpago
Concretamente peço, perceba-me:
meu nome é seqüência de letras.

(Palavras também se emprestam: “Preciso do desperdício das palavras para conter-me”[1])





[1] Manoel de Barros (1993). O livro das ignorãnças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3a edição,  pg 43.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Sob a tempestade

Esses casos são reais, apenas os nomes foram trocados. Nesse formato foram usados em diversos cursos de formação de pessoal dos serviços de saúde pública, em vários contextos: centros de aconselhamento e testagem; serviços de assistência ambulatorial e hospitalar (clínica médica e pediátrica); eventos sobre bioética; eventos sobre prevenção entre grupos de vulnerabilidade ampliada (presídios, usuários de drogas, trabalhadores do sexo...). Coligidos no Hospital Eduardo de Menezes e no Centro Geral de Pediatria, em Belo Horizonte, durante o final dos anos 90 (entre 1996 e 1998), esses casos dizem de um tempo quando o tratamento da aids era pouco eficaz e rudimentar em muitos aspectos: farmacológico, ético, clínico, psico-social, direitos humanos, etc... Talvez daí a presença muito forte da morte ou de uma sensação de perspectivas ruins. E no entanto, mais de 15 anos depois, ainda tenho contato com pessoas que foram pacientes e que estão bem. Somos - tanto eu como eles - sobreviventes. Muito se poderia dizer sobre cada um dos casos, que aspectos me levaram a escrevê-los ou foram mais discutidos com as pessoas com quem tive oportunidade de compartilhá-los pessoalmente, que "lições aprendidas" tive com eles ou a partir das reações que eles provocaram, etc... Não tenho certeza se deveriam ser publicados aqui ("literatura") ou como material de oficinas "técnicas", no "Ciência Minas". Embora sejam casos reais, a forma como foram registrados e vividos tem algo de "literário". Foram usados em "contextos técnicos", mas não são "textos técnicos". Opto por disponibilizá-los como "crônicas anacrônicas", vozes que merecem ser lembradas, pálida homenagem a essas pessoas, vivas e mortas, com quem as compartilhei e que comigo as compartilharam.


Sob a tempestade - casos da "era aids"

Caso 1
Plantão de fim de semana no HEM, sábado à noite. Recebo chamada no telefone:
-"Alô, doutor, aqui é a assistente social da prefeitura de XXX. É que estamos com um caso de AIDS e precisamos de internar. Tem vaga?"
-"Temos vagas, mas eu queria saber o que o paciente tem. Posso falar com o médico que o atendeu?"
-"Ele já foi embora e deixou eu tentando arranjar vaga. Vou tentar achar alguém para falar com o senhor.".
Uns vinte minutos depois, às nove e quarenta, outra chamada:
-"Doutor Marcelo? Aqui é o prefeito de XXX. Quero lhe pedir para receber o Fulano, que está com AIDS. O doutor pediu para transferí-lo."
-"O senhor sabe dizer o que aconteceu com o paciente?"
-"Não. Sei que está com AIDS e o doutor mandou transferir para Belo Horizonte. Posso mandar levar?"
-"Pode."
Às três e cinco da manhã do domingo sou chamado pelo SAME:  -"Doutor, o paciente que veio do interior chegou."
No corredor, encontro um rapaz de 28 anos, com uma sacolinha com roupas nas mãos trêmulas, ansioso e assustado. Atrás dele, lá no portão, um homem à porta da ambulância com o motor ligado: -"Esse aí é o fulano que o doutor XXX, o prefeito, mandou trazer. Já estou indo, até logo, obrigado.".
O rapaz é levado ao leito e inicio a conversa. Nenhum relatório ou encaminhamento. Da sacolinha tira um resultado de laboratório dizendo "ELISA anti-HIV positivo". Pergunto como foi a história da sua doença. -"O doutor XXX me chamou porque eu tive que fazer uns exames para trabalhar na firma YYY, e me falou que eu tinha AIDS, não podia trabalhar e devia ser internado para tratamento em Belo Horizonte.".
-"Você está com algum problema de saúde hoje?"  -"Não senhor. Só cansado da viagem".
O exame físico é normal, não há sinais de doença ativa. Pêso normal, afebril, sem adenopatias, aspecto hígido. Passa o domingo no hospital, explico que não precisa ficar internado e que pode voltar para sua cidade. A assistente social liga para a prefeitura na segunda-feira:
-"Aqui é do Hospital Eduardo de Menezes, é sobre o paciente que vocês encaminharam. Ele está bem e não precisa ficar internado. Vai ser acompanhado no ambulatório, e já marquei a consulta para daqui a 20 dias. Vou mandá-lo de volta pelo ônibus hoje. Ele pode continuar trabalhando.".
Espanto e dificuldade do outro lado: não está com AIDS? como pode trabalhar? o doutor não falou que não pode? vai ficar aqui contaminando todo mundo e ainda sem tratar? aqui é cidade pequena, não tem recurso, etc, etc...
Vinte dias depois o retorno. Perdeu o emprego, está morando na roça. Quase não vai à cidade. Forneço atestado de ser HIV-positivo para levar à previdência social. É afastado e passa a receber "auxílio doença". Usando anti-depressivos. Quer se mudar para Belo Horizonte, não quer voltar para sua cidade. Assintomático.

Caso 2
Sou parado no corredor por moça agitada, com um atestado de óbito nas mãos.
-"Doutor, posso falar com o senhor? Queria que o senhor me fizesse um favor: o meu marido morreu aqui e quero levar para enterrar na nossa cidade. Só que queria que o senhor me desse outro atestado de óbito, sem falar nessa doença."
Olho o atestado. Sobre a causa de morte foi pregado pedaço de esparadrapo. Contra a luz se lê "SIDA".
-"Não posso fazer isso, o atestado de óbito é um documento, não pode ser preenchido com doença de mentira ou escondendo o que aconteceu".
-"Mas como vou fazer? Lá é desse tamaniquinho, o pessoal do cartório me conhece, vão espalhar para a cidade inteira, vou perder meu emprego, tenho 3 meninos p'rá criar...". - começa a chorar...
-"Vamos fazer o seguinte: você enterra aqui em Belo Horizonte, dá o endereço de onde ele ficou aqui (casa de parentes) como endereço residencial, registra o óbito aqui.". Ela insiste. Não cêdo. Tento acalmá-la. Não se conforma com o atestado.
Eu a vejo, no mesmo dia, já à tardinha, abordar outro médico. Parece cansada. Depois desaparece.

Caso 3
Chamado para fazer internação. Há quarenta e quatro horas de plantão. Faltam quatro.
Paciente Luiz, 22 anos, encaminhado do Hospital Militar com história de diarréia e ser HIV-positivo.
Encontro-o no leito, com a mãe e o pai, militar. Febril, desidratado grave, muito pálido, dispnéico, olhos ansiosos, extremamente magro: pesa 34 kilos.
A mãe me conta que tem tuberculose e que havia parado com todos os medicamentos há mais de 30 dias: - "ficou só com a fé que ia curar..."
O pai me chama, parece espantado que eu tenha aceitado tratar do filho: -"Deus lhe pague, doutor. Mas eu acho que já tinha que ter morrido. Tem aquela outra doença também, é viado, e ainda tá com tuberculose. Não sei como vocês ainda ficam tratando.".
A mãe percebe que está muito grave, diz que queria ter trazido antes, "mas ele não queria vir...".
Reidratação feita, volto para reavaliar. Está melhor, conversa, menos dispnéico. Peço transfusão de sangue. Não chega a tomar. Falece na manhã seguinte.

Caso 4
Ana e seu saxofone. Veio de São Paulo, mora em casa de apoio. É portadora assintomática. Não trabalha: era dona de casa e não tem profissão. Não tem filhos nem pais nem parentes. Tocava Sax. O parceiro se suicidou quando ficou sabendo que a contaminara.
Fala baixo, é calma. Não quer mais tocar Sax: muitas lembranças ruins. O seguimento com a psicologia é falho, nem sempre tem.
Parece não ter passado nem presente. As roupas são simples, não é bonita, não pergunta nada. Termina a consulta e vai embora. Retorno em três meses.

Caso 5
Primeira consulta no ambulatório lotado, não espera ser chamado: -"quem vai me atender? já chegou?"
Entra no consultório, pede para fechar a porta. Fala rápido e me conta que veio porquê teve icterícia, médico pediu exames, fez e mostrou na farmácia, lhe disse que estava com AIDS. Olho o exame, um papel já amassado: "ELISA anti-HAV: IgG positivo.".

Caso 6
Veio de longe: mais de oito horas de viagem. É lavrador, fala manso e em tom respeitoso.
Acorda cêdo e fica esperando a corrida de leitos. Desce e vai tomar sol. As perguntas são poucas, não entende o que é o vírus, concorda com tudo.
As mãos são grossas, a pele queimada, muito sêca, parece ter mais de 60 mas tem 48 anos.
Furunculose e anti-HIV+.
Vem ao ambulatório de vez em quando, se consegue transporte na prefeitura. Está satisfeito: "tô recebendo a “pensão” (benefício do INSS) todo mês, não recebia nada inhantes.".
O HIV é a pensão.

Caso 7
Renata veio do Pronto Socorro do H. João XXIII. Magrinha, agitada, alegre. "Tou com muita tosse, tou passeando em BH, tava em hotel, tenho parente nem documentos não. Sou de São Paulo." Raio X com cavitações. Escarro BAAR 2+/3+.
"Já fiz um monte de exame desse agá-í-vê, nunca recebi resultado, quero fazer de novo não. Já estive em Ribeirão, Itu, Santos, São Paulo, Rio, agora aqui em BH. Faço não. Já me receitaram muito remédio, perdi, tomo nada.".
Conta que usava drogas. Tem candidíase oral. "Um monte de amigo meu já morreu de AIDS".
Trata seis dias e passa a exigir alta. Sai do hospital com dinheiro de passagem: "Vou voltar para SP". Vai e leva os remédios. O relatório e encaminhamento que fiz a enfermeira me mostra, amassados, no lixo.

Caso 8
Daniela tem 4 anos, está com hepatite grave. A mãe já faleceu, o pai também. A avó a traz às consultas e agora a acompanha na internação. Falência hepática, sepsis, insuficiência renal. Me chama:
"-Ela vai morrer, né? O senhor sabe, só tive uma filha, meu gosto é a Daniela. Fico mais triste porquê ela morrendo eu fico sozinha. Vi meu povo se acabar. Deus faz coisa que a gente não entende.".
Fala com a calma dos que esgotaram as lágrimas. Só tem espanto nos olhos.

Caso 9
Ronaldo veio do presídio, onde cumpre pena por latrocínio, para consulta, com escolta armada. São retiradas as algemas para a consulta. Quer fazer anti-HIV, insiste e frisa: "-uso as droga tudo, faço tudo, com home e mulher.".
Os guardas evitam contato direto, apontam com as armas, indicam a direção por onde caminhar, ficam no consultório com metralhadoras, arredios. Sem sinais de doença, mas desnutrido e fumando compulsivamente.
Faz o teste, retorna para o resultado, positivo. Parece feliz: "-já sabia que ia dar. Vou ser solto, eles não prendem aidético, e prêso com AIDS não apanha porquê eles têm medo de pegar".
Outro "colega" do presídio também vem, na mesma situação, e conta: Ronaldo está solto, sumiu. Assim como o novo caso.

Caso 10
Ivani tem 32 anos, é homossexual, tem SIDA. Teve toxoplasmose, ficou com seqüela (hemiparesia parcial à E). Tomando vários remédios antivirais e profiláticos, está relativamente bem. Não perde o bom humor, ri com o lado bom do rosto e conta sobre sua vida e seus planos: -"Esse ano vou passear no Nordeste, ficar mais uns dias na praia. Vou falar para você: depois que fiquei sabendo da AIDS, minha vida melhorou mil por cento. Sabe essas coisas que a gente é doido prá fazer mas fica deixando para depois? Agora eu faço tudo. Estou trabalhando menos, fico só no escritório e não visito as obras (é engenheiro). Estou ganhando muito menos, mas em compensação vivendo muito mais. E só faço o que eu gosto, só converso com quem quero, meus amigos são amigos mesmo, agora eu sei quem é quem. Estou lendo coisas que antes não tinha tempo, assistindo a filmes que queria ver e não dava,  passeio toda tarde..." –
Discorre sobre sua qualidade de vida atual, muito melhor que antes, diz ser outra pessoa. Parece sincero, suas palavras são alegres. Seu parceiro empurra a cadeira de rodas, percebe-se carinho entre eles. Sai para o corredor, eu o escuto brincar com outros pacientes.

Caso 11
Rui é um paciente chatíssimo. Não aceita os remédios, não concorda com as condutas, questiona a enfermagem sobre tudo, reclama dos colegas de enfermaria, foge para a outra ala, briga com visitas dos outros (não recebe visitas). De vez em quando piora, fica mais calado, não briga, está mal. Melhora e a implicância volta. Reclama da comida, da posição da cama, do horário dos exames, do plantão quando não vem para ver suas queixas e quando vem para examiná-lo.
Faz escândalo para ter veias puncionadas, xinga a moça do laboratório (-"Burra! Burra!"), tenta manipular a enfermagem gemendo e fingindo-se grave para não tomar banho, depois pergunta porquê está sendo esquecido. Procura compulsivamente pretextos para queixas.
Muitas internações, quando tem alta todo mundo fica aliviado, quando volta os residentes perguntam entre si: "quer trocar o Rui por dois dos seus pacientes?" ou "meus parabéns, o Rui é seu!". Difícil conversar com ele para saber sobre seus sintomas, tende a hipervalorizar as queixas, difícil saber o que é verdade, não tolera o exame físico, acaba mal olhado.
Tudo o aborrece, nada agrada, ninguém sabe nada do que ele tem, joga os medicamentos fora. Vai piorando, fica torporoso. De vez em quando parece ter momentos de melhora do coma, dá muxoxos, seu rosto se conserva vincado por rugas de contrariedade. Falece, a morte um comprido aborrecimento.
Ninguém reclama o corpo.



Caso 12
Dona Conceição, 58 anos, do interior do estado, vem à consulta com o marido, já doente, acompanhados de filhos, filhas, netos adolescentes. Enchem o corredor, todos estupefatos pela doença do avô, pai, marido. Quando falo a ele sobre a necessidade de testar a esposa, fica furioso. Ela chora. Acaba sendo testada - positivo - pede para não contar para ele. As filhas e netas, no consultório, choram e falam sobre culpa. Ela não concorda: "-ningém passa isso pros outros por maldade"...
Ele nunca pergunta sobre o exame da esposa. Falece oito meses depois, e Dona Conceição pergunta sobre quanto tempo de vida tem. Explico que ela está bem e não sabemos. As filhas ainda revoltadas. Pergunta novamente sobre perigo de beijar as netas, as filhas contam que tem evitado tê-las ao colo, com medo de contágio porquê "deu no jornal que saliva pega".
Muitas consultas depois parece mais tranqüila, mas ainda surpresa. "-Minha vida virou tudo de perna prá cima. Eu, já velha, não gosto de ficar pensando, não consigo entender tudo... Ele parecia tão quieto, do trabalho para casa e da casa para o trabalho...".
Uma filha que mora em Belo Horizonte diz que quer trazê-la para cá, para evitar mais sofrimentos: Dona Conceição tem sido evitada por ex-amigas. -"Muita fofoca, doutor, mas eu gosto de morar lá, fui criada lá, minha casa é lá. Vou aguentando...". 

Caso 13
Cléo e Pat se conheceram no Hospital-Dia, onde tomavam ganciclovir no mesmo horário para retinite por CMV. Passaram a vir juntas, somando a pouca visão que cada uma ainda tinha para se orientarem mutuamente nos pontos de ônibus, no trajeto, na travessia das ruas. Quase cegas, delicadíssimas, falavam muito baixo, raras vezes tristes, a despeito do conteúdo das conversas – CD4 baixo, remédios que estão em falta, vales-transporte que não vieram... Partilhavam suas desgraças e minúsculas alegrias: como foi fácil obter ajuda da enfermeira no posto para tomar o remédio no fim-de-semana, os vômitos que diminuiram.
Num fim de semana, Cléo piorou subitamente, foi internada em outro hospital e faleceu. Na manhã de segunda-feira, Pat chega um pouco mais tarde, pergunta por Cléo, antes de qualquer resposta vai falando: “-sonhei que Cléo tinha morrido, ela me falou que morrer é bom e que eu devia parar de tomar estes remédios”.
A enfermeira desconversa, diz que Cléo mudou os horários, mas está bem. Pat continua vindo, acaba sabendo da morte de Cléo, supera. Chegam os inibidores de protease, Pat, que chegara a pesar 29 kilos e ficar em cadeira de rodas, melhora, volta aos 58 kilos normais, volta a trabalhar, está feliz com o filhinho.  Os mortos se enganam?

Caso 14
Alex tem sarcoma de Kaposi disseminado, a quimioterapia não está funcionando bem. A mãe o chama de “meu neném” conversam em tatibitate. Ele nega a gravidade, faz planos de viagens que nunca acontecerão, recusa medicações, falta às sessões, a mãe tenta explicações e justificativas. Fica pior, é internado, a mãe chorando baixo ao lado do filho comatoso, caquético, palidíssimo, respiração difícil. Segura meu braço: “-ele vai melhorar?”, beira a histeria, mau ouve as explicações, não tolera ouvir falar em possibilidade de morte.
Chego pela manhã junto ao leito ao lado da janela, claridade fresca da manhã de maio. Alex está agonizante, os olhos não me vêm, os membros magérrimos imóveis. Desligo o soro, retiro a sonda, me sento ao seu lado, a respiração vai ficando mais irregular e espaçada, até parar de todo. Está morto. A mãe chega depois, o corpo ainda no leito. Não fala nada, só se senta também, olhos muito vermelhos. Segura a mão dele, cabeça baixa, soluços, alisa a cabeça sem cabelos. Depois se vai, sem falar comigo.

Caso 15
Chego ao trabalho, tenho paciente nova: Mariana, 3 anos, mora em Casa de Apoio. Pesa 6,8kg, está com pneumonia. –“está estável”, me informam. Me preparo para a cena caminhando pelo corredor, para avaliá-la, nunca a vi antes. A vejo de costas no berço, sentada, os tubos de soro, da sonda naso-entérica, da sonda vesical, a máscara de oxigênio sobre o rostinho caquético. Nem me vê chegar, compenetrada em empilhar cubos coloridos.

Caso 16
Colegas me passam os casos no plantão, pedem para avaliar dois pacientes internados hoje. Sebastião, leito 12, com quadro de meningite menigocóccica, já em final de tratamento, ótima evolução, é só conferir o resultado da punção de controle para dar alta. Roberto, leito 18, com meningite fúngica, tem SIDA, prognóstico mais reservado.
Resolvo ir ver primeiro Sebastião,  que está com alta programada, entro no quarto, percebo que ele e a companheira estão muito tensos, adoto atitude de leveza, brinco com ele, explico que não precisa ficar assustado, que o tratamento funciona bem e que ele vai em breve para casa, depois é só marcar o acompanhamento no ambulatório. Me ouve com surpresa, me pergunta se eu acho mesmo que ele vai ficar bem, repito que sim, fica mais feliz, a companheira ao lado do leito bebe minhas palavras, pede para me acompanhar no corredor: -“muito obrigada, doutor, o senhor é legal, o outro nos deixou assustados”. Reitero meu otimismo, aviso que vou buscar os resultados do exame para falar mais com eles, saio do quarto.
Peço à enfermeira os resultados do exame de líquor para liquidar o assunto e pedir ao residente que faça a alta, me surpreendo ao vê-los, pergunto à residente: “-esses são os resultados do Sebastião, do leito 12?”. –“São”, ela diz. Meu espanto continua. –“mas esse tem meningite fúngica, ele não tem não é meningite bacteriana?”  -“não, o outro que você ainda não olhou é que tem, está aguardando para ter alta hoje, esse é o HIV+”.
Eu trocara os nomes, lidara com Sebastião com um otimismo que eu imaginara para o outro. Entro no quarto outra vez, a tensão deles desaparecera, me desarmo, me re-organizo, sorrio para eles. Até hoje falam no assunto, em como eu lhes dei força quando estavam com medo de morrer de AIDS.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 11 (final)

 

As cidades e os símbolos – final



Tudo que se dá ou diz é símbolo dos sentimentos.
Todos os presentes são símbolos do amor, o presente único, arquétipo de todos.
Que mais posso dizer? Toma-me.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 10 ("Vulpan" e "Sudoeste")

As cidades e os símbolos – 3

O problema da morte (a saber: de não se poder mais conversar com as pessoas quando deixam de existir) foi resolvido em Vulpan com refinamento da escrita. Considerando que, se houver como conhecer profundamente alguém se pode prever quais seriam suas atitudes e palavras quando ela própria não existir mais para tomá-las ou dizê-las, os gramáticos de Vulpan desenvolveram pontuação tonal acurada. Limitações: analfabetos e crianças (estas, de qualquer forma não interlocutores plenos nem quando vivas).
O eu em grafismos: essa falsa imortalidade, cultivada como consolo de perdas. Os livros são um misto de pauta musical com palimpsesto para os sentidos. Estilos, sotaques, a precisão do aprendizado, os dicionários tonais.
Savantismo ao contrário: nenhuma memória, abstração riquíssima. Controle: filmes, depoimentos, comparação com parentes, conterräneos e contemporäneos, etc...Arqueologia do self. O que diriam os mortos?
O subjetivo é definido pelo objetivo, mas esse último não é reproduzível, portanto inapreensível.
A ânsia de escrever que toma alguns cidadãos, ocupados demais com deixar registros de si mesmos para viver.
Como as cartas, mensagens de e-mail, olhares, etc, nenhuma escrita resolve demanda de amor. Nem para os que morrem e que gostariam de serem amados mesmo depois de deixarem de existir (paradoxo), nem para os que vivem suas perdas. Em Vulpan se constata: que amor pode existir sem correspondëncia?


As cidades a serem feitas – 1

Confesso: não me esforcei em aprender os rumos nesta cidade, além de sabê-la a sudoeste. A relação com ela é fluida, tenho dúvidas se seriam possíveis as mesmas sensações ao visitá-la ou comentá-la com outros. Meus sentidos amortecidos para as informações, embebidos na calidez das pequenas caminhadas à noite, na rotina que se estabelece rápido nos horários do trabalho, das refeições e do sono. Rotina calma, de abandono das existências fora desta cidade, fazendo com que as idas e vindas até ela adquiram ar de sonho: lá não me dou conta de tudo que acontece, fora de lá o mais concreto são as lembranças, baças imagens de um braço, um banco ao sol, uma mesa, uma sala, o calor de uma pele, presença e voz. De uma ou outra forma, em mim a suspeita de irrealidade, incompatibilidade com o mundo. E, no entanto, reconheço esta mesma imaterialidade em outros espaços, esta intensa diluição dos sentidos, este espírito fugidio e impalpável, causando-me dúvidas entre nele mergulhar ou apenas esperar que aconteça. O fugidio não está naquela cidade nem em nenhuma outra, esta óbvia conclusão não esvazia a ternura que ela me evoca. Antes aumenta minha esperança, que eu a encontre ou construa: olho minhas mãos e escrevo palavras de saudade.

domingo, 5 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 9 ("Cidade dos Ventos" e "Céu de Março")

As cidades e os destinos – 5 (Palíndromo)

Estive numa cidade fustigada de sol e de ventos de janeiro, cujas ruas às vezes ando ida e volta. Pensei escrever sobre ela, algo que pudesse ser lido em sentidos vários, como se andasse em suas ruas. Ou não escrever. A não escrita uma das direções da possibilidade de escrever. Lembro ter havido momentos quando quis parar e não andar mais. Não andar é trajetória quando há muitos caminhos e nenhum destino. Contudo, um texto, mesmo quando seu sentido é múltiplo ou óbvio, tem sentidos diferentes de um texto não escrito. Andar indiferente ao destino é diferente de não andar. Sei disso quando recuso uma esquina. Foi assim e andei ao lado ou à frente, mesmo sem saber onde me levava, lentos redemoinhos nos pensamentos, rodeados por um vento estranho, que nos invadia os olhos, a boca, afogava e tirava o fôlego. De dentro do vento pensei: “-Esta cidade não precisa de mim. Eu não preciso dela”. Está sendo assim e escrevo. Talvez deva escrever por delicadeza e você o lerá por delicadeza. Andamos ao vento como se ele não estivesse acontecendo, até o qualquer destino. Então eu vou, eu vôo, na noite de 24 de Janeiro do ano de 2003. Esta cidade tem um nome entre muitos. O diria se seus olhos o pudessem ouvir. Eles não estão aqui: a cidade se apaga. Sigo suspenso no ar. Hoje é um tempo adiante. Um tempo seco.

 

 



As cidades deixadas - 3


Nos céus dos espaços entre as cidades o viajante, em início de Março, no frescor da noite após o dia quente, vislumbra os asterismos. Quantas pessoas de tantos lugares ao longo de tanto tempo os viram e verão... Eis cetis, que sei ser um sistema sextuplo e não uma estrela; capella marcadamente brilhante, no cocheiro, atraindo com naturalidade o olhar; arcturus, que demoro a identificar, desnorteado pelas suas companheiras; as plêiades (“seixu” para meus antepassados nas matas) fugidias ao olhar direto e sentidas na retina quando se desvia os olhos; mira cetis, estrela volúvel de brilho variável (mas previsível e cíclico); os aglomerados Messier, aparentes manchas delicadas, na verdade espaços enormes reunindo brilhos de muitas estrelas não distinguíveis individualmente; Eta-Carina, sistema duplo de estrelas de cores e magnitudes diferentes, que parecem próximas e na verdade estão afastadas; o negrume de alguns espaços onde não enxergo nada por limitações dos meus olhos míopes e incapazes de perceber as radiações em freqüência não visível e, de qualquer forma, vedados a mim. As tramas das nebulosas de brilho frio, fino, etéreo (um planeta imerso nestes brilhos conhecerá a noite?); os planetas solares, quase triviais. Quantas analogias possíveis entre estes brilhos e as pessoas, ou melhor, entre estes brilhos e as interações entre as pessoas, ou, diretamente: entre esses achados e as minhas formas de perceber nossa curta história. Repito os poucos nomes conhecidos em saudação respeitosa (compreendo o cuidado islâmico de não nomear Deus), tentando a melhor pronúncia do árabe, grego, latim, línguas antigas. Percebo enunciá-los tentativa de invocar tua presença. Como se pudesse me ouvir. Há (por um breve segundo) a sensação de que aqueles nomes nunca me pareceram tão inúteis. Silencio, aproveito o ar e os cheiros da terra. Através da madrugada e da estrada, caminhando no escuro, desfio minha memória, transfiro as quaisquer dores para aquelas distâncias, me sei miúdo e em paz. Canopus, algjebah, aldebaran, sirius a anos-luz, ouçam minha voz (como a de todos): eu sou um homem que acata seu destino e caminha na noite, sem medo e agradecendo tuas companhias. Das estrelas, essas alegrias: não dizerem nada.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Outras Cidades - Parte 8 (Planuras e "Tile")

As cidades deixadas - 2

Planuras,é o que se vê vindo do norte, do oeste, do sul: até essa cidade. Distante, é tradição de viajantes visitá-la, a maioria pelo mar. Diga-se, é cidade marinha, impregnada de sal, não apenas costeira. Tudo próximo ao porto. Em galpão que já abrigou locomotivas, o pátio recortado por trilhos, houve momentos de multidão e de encontro, agora já fechado outra vez, raios do sol o invadem pelas frinchas no telhado ou das portas, somente os pardais são ouvidos. Nas ruas vazias, antes dos galos, há grupos de cães trotando, noite fresca. Os mesmos nos últimos duzentos anos. Lá estive fugaz. Uma mulher navegara comigo a noite, límpida como rota a ponto e porto certos; intensa, e firme, e silenciosa, como chama de vela sem vento. A noite e a mulher. Ela sabia que os Jasmins-do-Cabo são a flor. Na despedida calou-se súbito, sem deixar de sorrir ou me olhar nos olhos. Mas sei: cheguei numa madrugada e saí em outra. Talvez as impressões de quem chegue ou saia em outras horas, conheça outras mulheres, ande em outros lugares, sejam diferentes, talvez não. O nome dessa cidade não foi dito, foi-me negado, permanece em murmúrios e intacta memória. Relatá-la aqui tem algo de profano em muitos sentidos.




As cidades e os símbolos – 2

As vidraças das fachadas dos prédios em Tile tornam as avenidas longas séries de espelhos paralelos. Os transeuntes, as coisas, os carros nas calçadas e ruas são remetidos ao infinito das imagens frente a frente. Não se vê o interior dos edifícios, nem se tem idéia dos seus espaços interiores. Atrás das portas de vidro nos halls não raro também há espelhos, outra camada de irrealidade. As imagens repetidas e re-refletidas multiplicam, ocupam e substituem o mundo. Uma sala que não existe se abre no teto, um vão entre duas pilastras (ou é apenas uma, a “outra” um reflexo?) pode ser um corredor ou um canto ou a continuidade do salão. Vidros instalados, diz-se, para aumentar a sensação de espaço (por exemplo no banheiro do hotel barato onde me hospedo) me parecem ardilosa armadilha. A multiplicidade de alternativas dificulta a organização de como se portar, desconcerta, não se sabe para onde olhar. Há ainda o fato de que os espelhos devolvem a quem os olha seu reflexo: quem busca nos espelhos explicações sobre o mundo exterior só encontra (não sem surpresa nem sem ganhos) os próprios olhos. Os visitantes, não habituados a este exercício, de início se debatem nas portas, tentam se orientar tampando com as mãos a luz que se reflete nos vidros, e então adotam o comportamento de quem se acha observado. Aos poucos (como acontece com os habitantes) à custa de se defenderem dos reflexos e dos olhares refletidos (digo, dos olhares sobre seus reflexos; digo, dos reflexos de olhares sobre os reflexos; digo, dos olhos-espelhos) se fecham em si mesmos, passam a não esperar nada do exterior e a cultivar a própria imagem como ideal a ser perseguido, usam os espelhos para reafirmar as linguagens do corpo consideradas cult, treinar os gestos, compor o “eu”. Não se interessam nem se apercebem se a imagem do espelho é o eu invertido, o outro lado, o que parece idêntico e é contrário, o que parece real - e é - luz (quase sempre artificial) refletida. Alguns se adestram tanto que se transformam em seus reflexos, aliás, agem em consonância com os efeitos de suas imagens, adotam atitudes que possam serem vistas de qualquer ângulo. Não sei se as expressões nos rostos e gestos dos corpos são para mim ou para os espelhos. Para os que não se lembram mais de como eram, talvez a primeira imagem pessoal enviada por algum espelho - quando do primeiro momento de passada frente ao primeiro espelho - tenha escapado, esteja agora viajando no espaço, fragilíssimos fótons, e seja recuperável com alguma artimanha da física relativística.
Relativismo: a única esperança dos reflexos que cruzam as ruas.
Então a revelação. Um cego atravessa as ruas de cabeça erguida. Eu o invejo e aprendo: espero a noite, caminho de olhos fechados, tateando as paredes, deixo Tile: as luzes e seus ricocheteios sem fim ficam para trás. Muito acima as luzes das estrelas, vagarosa e delicadamente, vão se tornando perceptíveis. As reconheço.