quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 10 ("Vulpan" e "Sudoeste")

As cidades e os símbolos – 3

O problema da morte (a saber: de não se poder mais conversar com as pessoas quando deixam de existir) foi resolvido em Vulpan com refinamento da escrita. Considerando que, se houver como conhecer profundamente alguém se pode prever quais seriam suas atitudes e palavras quando ela própria não existir mais para tomá-las ou dizê-las, os gramáticos de Vulpan desenvolveram pontuação tonal acurada. Limitações: analfabetos e crianças (estas, de qualquer forma não interlocutores plenos nem quando vivas).
O eu em grafismos: essa falsa imortalidade, cultivada como consolo de perdas. Os livros são um misto de pauta musical com palimpsesto para os sentidos. Estilos, sotaques, a precisão do aprendizado, os dicionários tonais.
Savantismo ao contrário: nenhuma memória, abstração riquíssima. Controle: filmes, depoimentos, comparação com parentes, conterräneos e contemporäneos, etc...Arqueologia do self. O que diriam os mortos?
O subjetivo é definido pelo objetivo, mas esse último não é reproduzível, portanto inapreensível.
A ânsia de escrever que toma alguns cidadãos, ocupados demais com deixar registros de si mesmos para viver.
Como as cartas, mensagens de e-mail, olhares, etc, nenhuma escrita resolve demanda de amor. Nem para os que morrem e que gostariam de serem amados mesmo depois de deixarem de existir (paradoxo), nem para os que vivem suas perdas. Em Vulpan se constata: que amor pode existir sem correspondëncia?


As cidades a serem feitas – 1

Confesso: não me esforcei em aprender os rumos nesta cidade, além de sabê-la a sudoeste. A relação com ela é fluida, tenho dúvidas se seriam possíveis as mesmas sensações ao visitá-la ou comentá-la com outros. Meus sentidos amortecidos para as informações, embebidos na calidez das pequenas caminhadas à noite, na rotina que se estabelece rápido nos horários do trabalho, das refeições e do sono. Rotina calma, de abandono das existências fora desta cidade, fazendo com que as idas e vindas até ela adquiram ar de sonho: lá não me dou conta de tudo que acontece, fora de lá o mais concreto são as lembranças, baças imagens de um braço, um banco ao sol, uma mesa, uma sala, o calor de uma pele, presença e voz. De uma ou outra forma, em mim a suspeita de irrealidade, incompatibilidade com o mundo. E, no entanto, reconheço esta mesma imaterialidade em outros espaços, esta intensa diluição dos sentidos, este espírito fugidio e impalpável, causando-me dúvidas entre nele mergulhar ou apenas esperar que aconteça. O fugidio não está naquela cidade nem em nenhuma outra, esta óbvia conclusão não esvazia a ternura que ela me evoca. Antes aumenta minha esperança, que eu a encontre ou construa: olho minhas mãos e escrevo palavras de saudade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário