quarta-feira, 25 de julho de 2012

Outras Cidades - Parte 8 (Planuras e "Tile")

As cidades deixadas - 2

Planuras,é o que se vê vindo do norte, do oeste, do sul: até essa cidade. Distante, é tradição de viajantes visitá-la, a maioria pelo mar. Diga-se, é cidade marinha, impregnada de sal, não apenas costeira. Tudo próximo ao porto. Em galpão que já abrigou locomotivas, o pátio recortado por trilhos, houve momentos de multidão e de encontro, agora já fechado outra vez, raios do sol o invadem pelas frinchas no telhado ou das portas, somente os pardais são ouvidos. Nas ruas vazias, antes dos galos, há grupos de cães trotando, noite fresca. Os mesmos nos últimos duzentos anos. Lá estive fugaz. Uma mulher navegara comigo a noite, límpida como rota a ponto e porto certos; intensa, e firme, e silenciosa, como chama de vela sem vento. A noite e a mulher. Ela sabia que os Jasmins-do-Cabo são a flor. Na despedida calou-se súbito, sem deixar de sorrir ou me olhar nos olhos. Mas sei: cheguei numa madrugada e saí em outra. Talvez as impressões de quem chegue ou saia em outras horas, conheça outras mulheres, ande em outros lugares, sejam diferentes, talvez não. O nome dessa cidade não foi dito, foi-me negado, permanece em murmúrios e intacta memória. Relatá-la aqui tem algo de profano em muitos sentidos.




As cidades e os símbolos – 2

As vidraças das fachadas dos prédios em Tile tornam as avenidas longas séries de espelhos paralelos. Os transeuntes, as coisas, os carros nas calçadas e ruas são remetidos ao infinito das imagens frente a frente. Não se vê o interior dos edifícios, nem se tem idéia dos seus espaços interiores. Atrás das portas de vidro nos halls não raro também há espelhos, outra camada de irrealidade. As imagens repetidas e re-refletidas multiplicam, ocupam e substituem o mundo. Uma sala que não existe se abre no teto, um vão entre duas pilastras (ou é apenas uma, a “outra” um reflexo?) pode ser um corredor ou um canto ou a continuidade do salão. Vidros instalados, diz-se, para aumentar a sensação de espaço (por exemplo no banheiro do hotel barato onde me hospedo) me parecem ardilosa armadilha. A multiplicidade de alternativas dificulta a organização de como se portar, desconcerta, não se sabe para onde olhar. Há ainda o fato de que os espelhos devolvem a quem os olha seu reflexo: quem busca nos espelhos explicações sobre o mundo exterior só encontra (não sem surpresa nem sem ganhos) os próprios olhos. Os visitantes, não habituados a este exercício, de início se debatem nas portas, tentam se orientar tampando com as mãos a luz que se reflete nos vidros, e então adotam o comportamento de quem se acha observado. Aos poucos (como acontece com os habitantes) à custa de se defenderem dos reflexos e dos olhares refletidos (digo, dos olhares sobre seus reflexos; digo, dos reflexos de olhares sobre os reflexos; digo, dos olhos-espelhos) se fecham em si mesmos, passam a não esperar nada do exterior e a cultivar a própria imagem como ideal a ser perseguido, usam os espelhos para reafirmar as linguagens do corpo consideradas cult, treinar os gestos, compor o “eu”. Não se interessam nem se apercebem se a imagem do espelho é o eu invertido, o outro lado, o que parece idêntico e é contrário, o que parece real - e é - luz (quase sempre artificial) refletida. Alguns se adestram tanto que se transformam em seus reflexos, aliás, agem em consonância com os efeitos de suas imagens, adotam atitudes que possam serem vistas de qualquer ângulo. Não sei se as expressões nos rostos e gestos dos corpos são para mim ou para os espelhos. Para os que não se lembram mais de como eram, talvez a primeira imagem pessoal enviada por algum espelho - quando do primeiro momento de passada frente ao primeiro espelho - tenha escapado, esteja agora viajando no espaço, fragilíssimos fótons, e seja recuperável com alguma artimanha da física relativística.
Relativismo: a única esperança dos reflexos que cruzam as ruas.
Então a revelação. Um cego atravessa as ruas de cabeça erguida. Eu o invejo e aprendo: espero a noite, caminho de olhos fechados, tateando as paredes, deixo Tile: as luzes e seus ricocheteios sem fim ficam para trás. Muito acima as luzes das estrelas, vagarosa e delicadamente, vão se tornando perceptíveis. As reconheço.

Outras cidades - Parte 7 ("Beira Rio" e "Bei")

As cidades deixadas - 1

Não há vantagem em insistir contra o calor abafado de Beira Rio, concorda-se, o chofer do táxi despreocupado o demonstra. O vento não existe sequer em sua mitologia, as tempestades de verão eterno, fugazes e violentas, não refrescam. A densidade do ar, diminuída pela umidade e pelo calor, causa sensação de irrealidade. Tranqüilizados frente à impotência, nada a fazer a não ser estar lá. Então, assim, houve uma tarde, gotejada pelo sol após a hora do almoço, em que um casal caminhava em sua periferia, distantes mas próximos. A tarde era líquida, parecia infinita, agora é passado. Pode-se apelar às memórias para evocá-la, pode-se reconstruí-la com os detalhes que se foi capaz de apreender e lembrar, pode-se tentar dar continuidade ao diálogo que aconteceu, imaginar as perguntas e respostas, as implicações, remoer os significados, os gostos que os olhares tiveram. Houve a tarde, a cidade está lá. O casal, levado em direções diferentes, a tem cada um ao seu modo. O calor, o sol, a estrada, a leve embriaguez pela cerveja, pelos ditos, pela presença, pelos sentidos. Há um que diz, às vezes, em seus devaneios, caminhando de olhos no chão sob o sol em outros lugares, como se rezasse: “Guardastes, ó Sol, as imagens que iluminastes, e as devolve, me envolvem, nesse brilho que ofusca. Lembra, caminho de pedras, o caminhar que aconteceu. Tenha em ti, cidade oeste, tu a que não é essa, que já vistes tantas tempestades, esse amor derramado em ciclone de chumbo e silêncio. Fundido, também líquido, suspenso em tua atmosfera. Numa tarde pessoal, separada dos tempos. Na pedrinha deixada sobre aquela mesa. Aqui caminho.”. Sabê-la no passado não a diminui nem causa dor. É lembrança, e lembranças são assim.


 

 

As cidades e as religiões - 4


Rezem, rezem, rezem, filhos de Bei! Calem teus desejos impuros, penitenciem-se, arrependam-se, sofram seus remorsos, implorem misericórdia, paguem dízimos, flagelem-se, jejuem, abstenham-se dos prazeres do mundo, esperem a morte. Alguém tem de justificar os prazeres de Deus. A cidade não dirá nada.

sábado, 14 de julho de 2012

Outras cidades - Parte 6 ("Xandia" e névoas)

As cidades e seus motivos – 3


Xandia tem história obscura, apagada e reescrita por muitas alternâncias de interesses, pouco chegou ao hoje. Os próprios monumentos e sítios arqueológicos, ao serem pesquisados, mais confundem que esclarecem, tal a profusão de indícios contraditórios, ou de contradições para explicar os poucos indícios, ou da falta de critérios na seleção das perguntas que se faz ao se deparar com eles, e há os que tentam mais explicá-los que compreendê-los. Puristas, como todos os tendenciosos, se apegam a fragmentos da história, aqui ou ali, como sinais de um todo que reconstroem segundo si próprios, obtendo o mesmo padrão mitificado do seu redor, os apresentando como verdadeiros. Mostram Y para ocultar X reforçando Z, simulam ocultar W para insinuar W+, enaltecem ou injuriam K com afirmações não verificáveis. Como já é sabido e já foi dito, "inventam o passado para justificar o presente e controlar o futuro". Contudo, os fragmentos lidos pelas diferentes facções não se encaixam em todo que permitisse vislumbrar de onde vieram. De tudo que se diz, escreve, alega, argumenta, fica evidente que nenhuma verdade resistirá, enquanto a realidade não for o foco. Num exercício de desprendimento, pode-se aprender que o mais real e perene sempre foi as manobras para dissimulação, ou melhor, que  a aparente falta de sentido dos indícios é indício de um padrão histórico maior: a repetição, pelas pessoas,  de erros, evoluindo muito lentamente. Esse aprendizado, para alguns, é importante, para outros pouco útil ou conveniente. Exatamente o que a história (e suas lacunas, aquelas partes de difícil compreensão para os que precisam deduzir contextos a posteriori) nos mostra.





As cidades e os destinos – 4


Ocorreu-me falar de uma cidade que me pareceu particularmente bela. Lembrei-me da avenida longa, suas luzes, semáforos, lanternas e faróis dos carros sob chuva fina, visíveis da sala de estar do hotel. Revi a cúpula da catedral altíssima, à minha direita enquanto tomava o café no terraço do prédio, a vista da baía e do porto, o caminhar entre velhas construções redivivas à noite, com seus concertos musicais, o cheiro de magnólias e brisa marinha na madrugada, caminhando ao seu lado. Como escolher o que era mais belo? Tento: o mais bonito era estar vivo. Era estar lá. Era tê-la comigo. Era uma mulher gostar de mim. Era me oferecer sua boca sorrindo. Era me abraçar entregue a mim. Não, tudo isso, e não no passado: o mais belo desta cidade é levá-la comigo, para sempre, símbolo de ter amado. Êi-la aqui, em meu peito, cidade de névoas que abrigam.

Outras cidades - Parte 5 ("Trite" e "Toz")

As cidades e os destinos - 3


Chegam a Trite imigrantes de outras regiões, fascinados pelo ambiente verde, pelas pessoas cordatas e silenciosas, pelo trabalho recompensador, pelo respeito mútuo que se lê nas faces dos transeuntes, pelos jardins bem cuidados, pela tranquilidade do senso de humor local, refinado sem ser agressivo, divertido inclusive ao rir de si próprio. Mesmo com as tantas diferenças que afluem, persiste em Trite núcleo a que vão sendo agregadas as contribuições e experiências dos que chegam, e estes sem resistências percebem a natureza humana de seus gestos, se esforçam então para trazer o melhor de si próprios. Valorizados, respeitados em suas singularidades, encontram sentido na paz comum. Contem-me, olho meu redor e vejo tudo que Trite tem: permitam-se.



As cidades e as religiões - 3


Os felizes habitantes de Toz, do lado de dentro dos muros, oram com seus livros absolutos, ouvem comovidos e gratos palavras dos iluminados que tudo sabem, em rituais queimam purificadoramente qualquer contaminante do mundo que pudesse ameaçar sua condição de protegidos eleitos. Gradativamente expandem os muros para mais adiante, a cidade tomando espaços antes selvagens, hostis, ignorantes, que vão sendo abençoadamente submetidos à boa ordem, ao conhecimento dos prazeres das regras, ao apaziguamento definitivo do caos, onde não há mais dúvidas - não é maravilhoso? Ocasionalmente são lamentavelmente obrigados (compreenda-se: a natureza humana, conquanto imagem do divino, não é perfeita, e a cidade tem o direito de se defender) a condenar alguém - horror! - a sair da cidade. Os presos de Toz vagam pelo mundo, condenados à liberdade mais abjeta e desesperadora. Uns poucos desaparecem, não são mais vistos, há boatos de sobreviverem em outros lugares. A maioria não resiste à pena, morrem à míngua, em grande sofrimento, ou enlouquecem segurando-se nas grades que os impedem de entrar. A outros acontece serem perdoados e readmitidos ao conforto da cidade, bondosa para com os que se arrependem, grande mãe, morada dos justos.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Outras cidades - Parte 3 ("confraria", "Ritális")

As cidades e a religião - 2


Existe no planeta esparsa, móvel confraria de não iniciados. Se reconhecem pelo sotaque dos olhares e gestos, se cruzam pelo mundo. Às vezes acenam amistosamente ou sorriem, se reconhecendo em lugares imprevistos, o calor no peito e uma harmonia imediata e antiga os identificam intensa, mútua, exclusivamente. Quem sabe aconteça no Kalahari, entendimento silencioso e profícuo entre caçadores bosquímanos; entre fregueses num pub na Islândia; entre tibetanos condutores de yaks partilhando trilhas sob nevascas; entre andarilhos formigando nos garimpos do Mato Grosso; entre estudantes pesquisadores no campo; entre estranhos nas salas de espera dos aeroportos; entre um homem e uma mulher quando acontece ponto em comum no espaço/tempo. Sem necessariamente nada em comum, cultura, signo, destino, não é isso. Só partilhar fluidamente (uns sabem, outros intuem) o que os faz rir ou chorar, como ouvem os ruídos do mundo, o jeito de perceberem o correr do tempo, sua desimportância, umas alegrias. Seu profundo senso religioso se maravilha com a existência mútua e com o fato de se reconhecerem nos momentos partilhados, quase sempre fugazes. Sua empatia fácil, algo mística, às vezes se materializa em paixões, redemoinhos juntos, o que não é garantia contra instabilidades humanas, nem controle sobre os rumos que a realidade toma. Não são raros, não são comuns. Somos nós.






As cidades e os destinos - 1


As bibliotecas de Ritális, cidade jovem, estão sempre vazias de leitores, embora exista contínuo e copioso aumento de seu acervo. Todos os seus livros são para serem lidos em algum futuro (não nesse, que é o futuro de ontem), mas para quando seus “motes” (o que os levou a serem escritos) já tenham passado no tempo ou na necessidade de serem considerados para qualquer decisão. São registros de destinos intuídos e ali (corajosamente) expostos, não defendidos nem recomendados, vislumbres, fragmentos de existências. Esses escritos, mesmo que descrevam algo que ainda não tenha sido vivido ou concluído, só serão lidos quando as respostas que oferecem já não fizerem mais diferença, seja por que as perguntas já nem sejam lembradas ou, se ainda conhecidas, contenham em si a decisão já tomada de seguir por outro caminho, ou seja: perguntas que de qualquer forma pertençam ao passado. Os escritores se consolam imaginando, em sua velhice, abrir esses livros empoeirados e ler como poderia ter sido, ou imaginando outros velhos (agora jovens e ao seu redor), ou seus descendentes, lendo o ora escrito e se comovendo com uma ternura quase insuportável (tão intensa que necessitara ser diluída no tempo), percebendo que o escritor já se comovia antevendo os olhos úmidos destes velhos do futuro, ao ser lido quando já não houvesse retorno, suas palavras não causassem mais censura ou temor, esvaziadas de seu tempo, plenas de eternidade. Alguns críticos alegam ser estratégia infame para ferir sem risco de retaliação. Não percebem que trata-se de tentativa de tardia felicidade, presentes para aqueles que agora não podem recebê-los. Os livros de Ritális correm (e oferecem) apenas um risco: jamais serem abertos.

Outras cidades - Parte 2 ("Arã", "Telpa")

 

As cidades e os símbolos - 1


Nas fotos expostas nas galerias e espaços públicos de Arã desfilam pioneiros, lugares, instrumentos, times de futebol, festas religiosas – gerações do gentio que se reconhece ou surpreende, observa os traços dos rostos dos antepassados, as expressões em seus olhos (há muito apagados) dos sentimentos por motivos que não podem ser conhecidos. Outras pessoas com roupas da época, ao fundo, irreconhecíveis, cujos nomes e histórias foram esquecidos, irrecuperáveis. Na praça de Arã um velho fotógrafo aponta a máquina para um novo prédio, prepara nova foto que anexará à coleção. Antes de apertar o disparador ergue um olhar que enquadra, mas também entedia. Não há interesse em documentar as mudanças para aprender com elas. As fotos provam apenas a existência do tempo.





As cidades e seus motivos - 1

Como todas as cidades, Telpa foi nascida de desejos ou contingências (os desejos não são contingências?), por eles teceu suas ruas, vielas, becos, esquinas. Ali onde se ergue uma casa e já esteve um armazém, acolá, onde agora passam os carros e houve um quintal; os novos desejos substituindo outros que se calaram, ou se perderam, ou se transformaram, ou foram sobrepujados, ou apenas esquecidos. Os habitantes de Telpa, ofuscados pelos próprios desejos/contingências, não enxergam os dos outros nem os antigos. Apagam memórias como se fossem suas, lhes pertencessem. Sem perceberem, se condenam e aos seus descendentes a urdidura infinita e sem rumo: ao apagar os desejos alheios para tecerem os seus passam a tecer o que não tem estofo nem onde se prenda. Seus olhos não vêm as pedras das ruas, mas o tráfego, incessante, incessável, para sempre. Há em Telpa quem seja feliz.

Outras cidades - Parte 4 ("Círope" e "Péren")

As cidades e seus motivos - 2


Círope tem muitas festas, as ruas enfeitadas atraem turistas, viajantes, legiões de espíritos convencidos de estarem onde deveriam. Os dançarinos típicos só usam aquelas roupas para os turistas, a comida é preparada por cozinheiros importados, os hábitos apregoados como tradições não são encontrados entre o povo. Círope é estereótipo de si própria, se perguntando em segredo se a cidade real é recuperável. Também é possível que Círope nunca tenha existido por si mesma, tenha sido sempre uma colcha de retalhos, ou nunca tenha existido outra Círope que não esta, caricaturizada nos objetos expostos, nas panelas fumegantes dos pratos “locais”, nos olhares assustados dos dançarinos - ao som das palmas automatizadas dos que descem dos ônibus e atacam as mesas e as mulheres, em qualquer ordem - tentando ver nos seus passos ensaiados sinais do caminho original, perdido, talvez nunca existido, inventado agora, ao moverem os pés em desespero, (seu desfile, suas vidas, por um fio), danças que juram antiquíssimas, ensinadas aos jovens, nelas adestrados, gritando (no grito se amparam): -Mais uma vez!

 

As cidades e os destinos - 2


Estar em Péren só é possível com tentativas oblíquas. As estradas não vão ter a ela diretamente, antes a tangenciam, estendendo vias secundárias ao passar por seus limites, se imiscuindo em suas ruas de tal forma que existe o risco de se passar pela cidade e só atentar para isso ao reconhecer os sinais dos arredores, já próximos da saída, num insight estranho: “era a cidade e já a deixo”. É cidade que se percebe ter encontrado nos preparativos da partida, onde os dias correram mais que em qualquer outro lugar, o tempo roubou no relógio, qualquer nostalgia de adeus só pode ser percebida muito tarde, transformada em surpresa, perda sem dor. Péren é cidade sem saudades, de sonhos de retorno impossível - já que todo reencontro é despedida -, roubados com habilidade, como se fossem supérfluos. Não poderia sequer descrever suas ruas, guardei retalhos visuais que não se articulam em imagem. Dizem ser bela. A verei outras vezes.




quinta-feira, 5 de julho de 2012

Outras cidades - Parte 1 ("apresentação", "paradoxo", "Belina"

Nesta Parte 1 incluo "Apresentação" e dois dos textos que compõem o conjunto "Outras Cidades", compondo série de textos escritos entre 2001 e 2006. A intenção é publicar um a três textos em cada parte desta série.

 

 

Apresentação


Confesso constrangimento óbvio: como justificar a semelhança (ao menos no formato, quisera na qualidade) com As cidades invisíveis de Calvino? Posso explicar, justificar seria outra história. O achado de Calvino - o uso das cidades como símbolo de relações humanas - me pareceu caminho feliz pela fusão de muitos aspectos da realidade, dos arrazoados e analogias sobre os sentimentos facilmente alocados nos espaços humanos (e onde mais poderiam ocorrer?) dos quais as cidades são o mais rico em significados. Imagino haver também realidade nestas “outras cidades”. Mas para quê descrevê-las? Pode-se escrever para o próprio consolo ou transcendência (o que talvez seja a mesma coisa). Não há (outra) justificativa.







 

As cidades e a religião - 1


O motivo de adoração dos habitantes de Belina não tem nome, nunca é citado. Não existe o hábito de mencioná-lo, dar-lhe graças, temê-lo nem suplicar sua ajuda. Não há dogmas a serem observados pelos conservadores ou criticados pela juventude. Não se erguem construções ou imagens, não há livros com regras de conduta, os estrangeiros os acharão um povo sem crenças. Contudo, seu respeito é tão grande que não se atrevem a criar qualquer limite ao seu motivo de adoração, seja denominando-o, imaginando sua aparência, opinando sobre juízos ou definindo suas preferências. Sequer ousariam descrever sua crença, como se isso fosse algum tipo de blasfêmia. Em matéria de divindades, o motivo de adoração dos belinenses atingiu a perfeição prescindindo da existência.



Felicidade não é atingível, e essa conclusão tranqüiliza. Parte da angústia era imaginar que a “culpa” pela ausência da felicidade era pessoal, algum tipo de fracasso. Ao colocar a felicidade como algo pertencente ao reino do imaginário, me aproximo dela. Rio: que tristeza! Ué?! Lembro: “when me they fly, I am the wings...” - Attar, Brahma.

Paradoxo