terça-feira, 28 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 11 (final)

 

As cidades e os símbolos – final



Tudo que se dá ou diz é símbolo dos sentimentos.
Todos os presentes são símbolos do amor, o presente único, arquétipo de todos.
Que mais posso dizer? Toma-me.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 10 ("Vulpan" e "Sudoeste")

As cidades e os símbolos – 3

O problema da morte (a saber: de não se poder mais conversar com as pessoas quando deixam de existir) foi resolvido em Vulpan com refinamento da escrita. Considerando que, se houver como conhecer profundamente alguém se pode prever quais seriam suas atitudes e palavras quando ela própria não existir mais para tomá-las ou dizê-las, os gramáticos de Vulpan desenvolveram pontuação tonal acurada. Limitações: analfabetos e crianças (estas, de qualquer forma não interlocutores plenos nem quando vivas).
O eu em grafismos: essa falsa imortalidade, cultivada como consolo de perdas. Os livros são um misto de pauta musical com palimpsesto para os sentidos. Estilos, sotaques, a precisão do aprendizado, os dicionários tonais.
Savantismo ao contrário: nenhuma memória, abstração riquíssima. Controle: filmes, depoimentos, comparação com parentes, conterräneos e contemporäneos, etc...Arqueologia do self. O que diriam os mortos?
O subjetivo é definido pelo objetivo, mas esse último não é reproduzível, portanto inapreensível.
A ânsia de escrever que toma alguns cidadãos, ocupados demais com deixar registros de si mesmos para viver.
Como as cartas, mensagens de e-mail, olhares, etc, nenhuma escrita resolve demanda de amor. Nem para os que morrem e que gostariam de serem amados mesmo depois de deixarem de existir (paradoxo), nem para os que vivem suas perdas. Em Vulpan se constata: que amor pode existir sem correspondëncia?


As cidades a serem feitas – 1

Confesso: não me esforcei em aprender os rumos nesta cidade, além de sabê-la a sudoeste. A relação com ela é fluida, tenho dúvidas se seriam possíveis as mesmas sensações ao visitá-la ou comentá-la com outros. Meus sentidos amortecidos para as informações, embebidos na calidez das pequenas caminhadas à noite, na rotina que se estabelece rápido nos horários do trabalho, das refeições e do sono. Rotina calma, de abandono das existências fora desta cidade, fazendo com que as idas e vindas até ela adquiram ar de sonho: lá não me dou conta de tudo que acontece, fora de lá o mais concreto são as lembranças, baças imagens de um braço, um banco ao sol, uma mesa, uma sala, o calor de uma pele, presença e voz. De uma ou outra forma, em mim a suspeita de irrealidade, incompatibilidade com o mundo. E, no entanto, reconheço esta mesma imaterialidade em outros espaços, esta intensa diluição dos sentidos, este espírito fugidio e impalpável, causando-me dúvidas entre nele mergulhar ou apenas esperar que aconteça. O fugidio não está naquela cidade nem em nenhuma outra, esta óbvia conclusão não esvazia a ternura que ela me evoca. Antes aumenta minha esperança, que eu a encontre ou construa: olho minhas mãos e escrevo palavras de saudade.

domingo, 5 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 9 ("Cidade dos Ventos" e "Céu de Março")

As cidades e os destinos – 5 (Palíndromo)

Estive numa cidade fustigada de sol e de ventos de janeiro, cujas ruas às vezes ando ida e volta. Pensei escrever sobre ela, algo que pudesse ser lido em sentidos vários, como se andasse em suas ruas. Ou não escrever. A não escrita uma das direções da possibilidade de escrever. Lembro ter havido momentos quando quis parar e não andar mais. Não andar é trajetória quando há muitos caminhos e nenhum destino. Contudo, um texto, mesmo quando seu sentido é múltiplo ou óbvio, tem sentidos diferentes de um texto não escrito. Andar indiferente ao destino é diferente de não andar. Sei disso quando recuso uma esquina. Foi assim e andei ao lado ou à frente, mesmo sem saber onde me levava, lentos redemoinhos nos pensamentos, rodeados por um vento estranho, que nos invadia os olhos, a boca, afogava e tirava o fôlego. De dentro do vento pensei: “-Esta cidade não precisa de mim. Eu não preciso dela”. Está sendo assim e escrevo. Talvez deva escrever por delicadeza e você o lerá por delicadeza. Andamos ao vento como se ele não estivesse acontecendo, até o qualquer destino. Então eu vou, eu vôo, na noite de 24 de Janeiro do ano de 2003. Esta cidade tem um nome entre muitos. O diria se seus olhos o pudessem ouvir. Eles não estão aqui: a cidade se apaga. Sigo suspenso no ar. Hoje é um tempo adiante. Um tempo seco.

 

 



As cidades deixadas - 3


Nos céus dos espaços entre as cidades o viajante, em início de Março, no frescor da noite após o dia quente, vislumbra os asterismos. Quantas pessoas de tantos lugares ao longo de tanto tempo os viram e verão... Eis cetis, que sei ser um sistema sextuplo e não uma estrela; capella marcadamente brilhante, no cocheiro, atraindo com naturalidade o olhar; arcturus, que demoro a identificar, desnorteado pelas suas companheiras; as plêiades (“seixu” para meus antepassados nas matas) fugidias ao olhar direto e sentidas na retina quando se desvia os olhos; mira cetis, estrela volúvel de brilho variável (mas previsível e cíclico); os aglomerados Messier, aparentes manchas delicadas, na verdade espaços enormes reunindo brilhos de muitas estrelas não distinguíveis individualmente; Eta-Carina, sistema duplo de estrelas de cores e magnitudes diferentes, que parecem próximas e na verdade estão afastadas; o negrume de alguns espaços onde não enxergo nada por limitações dos meus olhos míopes e incapazes de perceber as radiações em freqüência não visível e, de qualquer forma, vedados a mim. As tramas das nebulosas de brilho frio, fino, etéreo (um planeta imerso nestes brilhos conhecerá a noite?); os planetas solares, quase triviais. Quantas analogias possíveis entre estes brilhos e as pessoas, ou melhor, entre estes brilhos e as interações entre as pessoas, ou, diretamente: entre esses achados e as minhas formas de perceber nossa curta história. Repito os poucos nomes conhecidos em saudação respeitosa (compreendo o cuidado islâmico de não nomear Deus), tentando a melhor pronúncia do árabe, grego, latim, línguas antigas. Percebo enunciá-los tentativa de invocar tua presença. Como se pudesse me ouvir. Há (por um breve segundo) a sensação de que aqueles nomes nunca me pareceram tão inúteis. Silencio, aproveito o ar e os cheiros da terra. Através da madrugada e da estrada, caminhando no escuro, desfio minha memória, transfiro as quaisquer dores para aquelas distâncias, me sei miúdo e em paz. Canopus, algjebah, aldebaran, sirius a anos-luz, ouçam minha voz (como a de todos): eu sou um homem que acata seu destino e caminha na noite, sem medo e agradecendo tuas companhias. Das estrelas, essas alegrias: não dizerem nada.