terça-feira, 4 de setembro de 2012

Sob a tempestade

Esses casos são reais, apenas os nomes foram trocados. Nesse formato foram usados em diversos cursos de formação de pessoal dos serviços de saúde pública, em vários contextos: centros de aconselhamento e testagem; serviços de assistência ambulatorial e hospitalar (clínica médica e pediátrica); eventos sobre bioética; eventos sobre prevenção entre grupos de vulnerabilidade ampliada (presídios, usuários de drogas, trabalhadores do sexo...). Coligidos no Hospital Eduardo de Menezes e no Centro Geral de Pediatria, em Belo Horizonte, durante o final dos anos 90 (entre 1996 e 1998), esses casos dizem de um tempo quando o tratamento da aids era pouco eficaz e rudimentar em muitos aspectos: farmacológico, ético, clínico, psico-social, direitos humanos, etc... Talvez daí a presença muito forte da morte ou de uma sensação de perspectivas ruins. E no entanto, mais de 15 anos depois, ainda tenho contato com pessoas que foram pacientes e que estão bem. Somos - tanto eu como eles - sobreviventes. Muito se poderia dizer sobre cada um dos casos, que aspectos me levaram a escrevê-los ou foram mais discutidos com as pessoas com quem tive oportunidade de compartilhá-los pessoalmente, que "lições aprendidas" tive com eles ou a partir das reações que eles provocaram, etc... Não tenho certeza se deveriam ser publicados aqui ("literatura") ou como material de oficinas "técnicas", no "Ciência Minas". Embora sejam casos reais, a forma como foram registrados e vividos tem algo de "literário". Foram usados em "contextos técnicos", mas não são "textos técnicos". Opto por disponibilizá-los como "crônicas anacrônicas", vozes que merecem ser lembradas, pálida homenagem a essas pessoas, vivas e mortas, com quem as compartilhei e que comigo as compartilharam.


Sob a tempestade - casos da "era aids"

Caso 1
Plantão de fim de semana no HEM, sábado à noite. Recebo chamada no telefone:
-"Alô, doutor, aqui é a assistente social da prefeitura de XXX. É que estamos com um caso de AIDS e precisamos de internar. Tem vaga?"
-"Temos vagas, mas eu queria saber o que o paciente tem. Posso falar com o médico que o atendeu?"
-"Ele já foi embora e deixou eu tentando arranjar vaga. Vou tentar achar alguém para falar com o senhor.".
Uns vinte minutos depois, às nove e quarenta, outra chamada:
-"Doutor Marcelo? Aqui é o prefeito de XXX. Quero lhe pedir para receber o Fulano, que está com AIDS. O doutor pediu para transferí-lo."
-"O senhor sabe dizer o que aconteceu com o paciente?"
-"Não. Sei que está com AIDS e o doutor mandou transferir para Belo Horizonte. Posso mandar levar?"
-"Pode."
Às três e cinco da manhã do domingo sou chamado pelo SAME:  -"Doutor, o paciente que veio do interior chegou."
No corredor, encontro um rapaz de 28 anos, com uma sacolinha com roupas nas mãos trêmulas, ansioso e assustado. Atrás dele, lá no portão, um homem à porta da ambulância com o motor ligado: -"Esse aí é o fulano que o doutor XXX, o prefeito, mandou trazer. Já estou indo, até logo, obrigado.".
O rapaz é levado ao leito e inicio a conversa. Nenhum relatório ou encaminhamento. Da sacolinha tira um resultado de laboratório dizendo "ELISA anti-HIV positivo". Pergunto como foi a história da sua doença. -"O doutor XXX me chamou porque eu tive que fazer uns exames para trabalhar na firma YYY, e me falou que eu tinha AIDS, não podia trabalhar e devia ser internado para tratamento em Belo Horizonte.".
-"Você está com algum problema de saúde hoje?"  -"Não senhor. Só cansado da viagem".
O exame físico é normal, não há sinais de doença ativa. Pêso normal, afebril, sem adenopatias, aspecto hígido. Passa o domingo no hospital, explico que não precisa ficar internado e que pode voltar para sua cidade. A assistente social liga para a prefeitura na segunda-feira:
-"Aqui é do Hospital Eduardo de Menezes, é sobre o paciente que vocês encaminharam. Ele está bem e não precisa ficar internado. Vai ser acompanhado no ambulatório, e já marquei a consulta para daqui a 20 dias. Vou mandá-lo de volta pelo ônibus hoje. Ele pode continuar trabalhando.".
Espanto e dificuldade do outro lado: não está com AIDS? como pode trabalhar? o doutor não falou que não pode? vai ficar aqui contaminando todo mundo e ainda sem tratar? aqui é cidade pequena, não tem recurso, etc, etc...
Vinte dias depois o retorno. Perdeu o emprego, está morando na roça. Quase não vai à cidade. Forneço atestado de ser HIV-positivo para levar à previdência social. É afastado e passa a receber "auxílio doença". Usando anti-depressivos. Quer se mudar para Belo Horizonte, não quer voltar para sua cidade. Assintomático.

Caso 2
Sou parado no corredor por moça agitada, com um atestado de óbito nas mãos.
-"Doutor, posso falar com o senhor? Queria que o senhor me fizesse um favor: o meu marido morreu aqui e quero levar para enterrar na nossa cidade. Só que queria que o senhor me desse outro atestado de óbito, sem falar nessa doença."
Olho o atestado. Sobre a causa de morte foi pregado pedaço de esparadrapo. Contra a luz se lê "SIDA".
-"Não posso fazer isso, o atestado de óbito é um documento, não pode ser preenchido com doença de mentira ou escondendo o que aconteceu".
-"Mas como vou fazer? Lá é desse tamaniquinho, o pessoal do cartório me conhece, vão espalhar para a cidade inteira, vou perder meu emprego, tenho 3 meninos p'rá criar...". - começa a chorar...
-"Vamos fazer o seguinte: você enterra aqui em Belo Horizonte, dá o endereço de onde ele ficou aqui (casa de parentes) como endereço residencial, registra o óbito aqui.". Ela insiste. Não cêdo. Tento acalmá-la. Não se conforma com o atestado.
Eu a vejo, no mesmo dia, já à tardinha, abordar outro médico. Parece cansada. Depois desaparece.

Caso 3
Chamado para fazer internação. Há quarenta e quatro horas de plantão. Faltam quatro.
Paciente Luiz, 22 anos, encaminhado do Hospital Militar com história de diarréia e ser HIV-positivo.
Encontro-o no leito, com a mãe e o pai, militar. Febril, desidratado grave, muito pálido, dispnéico, olhos ansiosos, extremamente magro: pesa 34 kilos.
A mãe me conta que tem tuberculose e que havia parado com todos os medicamentos há mais de 30 dias: - "ficou só com a fé que ia curar..."
O pai me chama, parece espantado que eu tenha aceitado tratar do filho: -"Deus lhe pague, doutor. Mas eu acho que já tinha que ter morrido. Tem aquela outra doença também, é viado, e ainda tá com tuberculose. Não sei como vocês ainda ficam tratando.".
A mãe percebe que está muito grave, diz que queria ter trazido antes, "mas ele não queria vir...".
Reidratação feita, volto para reavaliar. Está melhor, conversa, menos dispnéico. Peço transfusão de sangue. Não chega a tomar. Falece na manhã seguinte.

Caso 4
Ana e seu saxofone. Veio de São Paulo, mora em casa de apoio. É portadora assintomática. Não trabalha: era dona de casa e não tem profissão. Não tem filhos nem pais nem parentes. Tocava Sax. O parceiro se suicidou quando ficou sabendo que a contaminara.
Fala baixo, é calma. Não quer mais tocar Sax: muitas lembranças ruins. O seguimento com a psicologia é falho, nem sempre tem.
Parece não ter passado nem presente. As roupas são simples, não é bonita, não pergunta nada. Termina a consulta e vai embora. Retorno em três meses.

Caso 5
Primeira consulta no ambulatório lotado, não espera ser chamado: -"quem vai me atender? já chegou?"
Entra no consultório, pede para fechar a porta. Fala rápido e me conta que veio porquê teve icterícia, médico pediu exames, fez e mostrou na farmácia, lhe disse que estava com AIDS. Olho o exame, um papel já amassado: "ELISA anti-HAV: IgG positivo.".

Caso 6
Veio de longe: mais de oito horas de viagem. É lavrador, fala manso e em tom respeitoso.
Acorda cêdo e fica esperando a corrida de leitos. Desce e vai tomar sol. As perguntas são poucas, não entende o que é o vírus, concorda com tudo.
As mãos são grossas, a pele queimada, muito sêca, parece ter mais de 60 mas tem 48 anos.
Furunculose e anti-HIV+.
Vem ao ambulatório de vez em quando, se consegue transporte na prefeitura. Está satisfeito: "tô recebendo a “pensão” (benefício do INSS) todo mês, não recebia nada inhantes.".
O HIV é a pensão.

Caso 7
Renata veio do Pronto Socorro do H. João XXIII. Magrinha, agitada, alegre. "Tou com muita tosse, tou passeando em BH, tava em hotel, tenho parente nem documentos não. Sou de São Paulo." Raio X com cavitações. Escarro BAAR 2+/3+.
"Já fiz um monte de exame desse agá-í-vê, nunca recebi resultado, quero fazer de novo não. Já estive em Ribeirão, Itu, Santos, São Paulo, Rio, agora aqui em BH. Faço não. Já me receitaram muito remédio, perdi, tomo nada.".
Conta que usava drogas. Tem candidíase oral. "Um monte de amigo meu já morreu de AIDS".
Trata seis dias e passa a exigir alta. Sai do hospital com dinheiro de passagem: "Vou voltar para SP". Vai e leva os remédios. O relatório e encaminhamento que fiz a enfermeira me mostra, amassados, no lixo.

Caso 8
Daniela tem 4 anos, está com hepatite grave. A mãe já faleceu, o pai também. A avó a traz às consultas e agora a acompanha na internação. Falência hepática, sepsis, insuficiência renal. Me chama:
"-Ela vai morrer, né? O senhor sabe, só tive uma filha, meu gosto é a Daniela. Fico mais triste porquê ela morrendo eu fico sozinha. Vi meu povo se acabar. Deus faz coisa que a gente não entende.".
Fala com a calma dos que esgotaram as lágrimas. Só tem espanto nos olhos.

Caso 9
Ronaldo veio do presídio, onde cumpre pena por latrocínio, para consulta, com escolta armada. São retiradas as algemas para a consulta. Quer fazer anti-HIV, insiste e frisa: "-uso as droga tudo, faço tudo, com home e mulher.".
Os guardas evitam contato direto, apontam com as armas, indicam a direção por onde caminhar, ficam no consultório com metralhadoras, arredios. Sem sinais de doença, mas desnutrido e fumando compulsivamente.
Faz o teste, retorna para o resultado, positivo. Parece feliz: "-já sabia que ia dar. Vou ser solto, eles não prendem aidético, e prêso com AIDS não apanha porquê eles têm medo de pegar".
Outro "colega" do presídio também vem, na mesma situação, e conta: Ronaldo está solto, sumiu. Assim como o novo caso.

Caso 10
Ivani tem 32 anos, é homossexual, tem SIDA. Teve toxoplasmose, ficou com seqüela (hemiparesia parcial à E). Tomando vários remédios antivirais e profiláticos, está relativamente bem. Não perde o bom humor, ri com o lado bom do rosto e conta sobre sua vida e seus planos: -"Esse ano vou passear no Nordeste, ficar mais uns dias na praia. Vou falar para você: depois que fiquei sabendo da AIDS, minha vida melhorou mil por cento. Sabe essas coisas que a gente é doido prá fazer mas fica deixando para depois? Agora eu faço tudo. Estou trabalhando menos, fico só no escritório e não visito as obras (é engenheiro). Estou ganhando muito menos, mas em compensação vivendo muito mais. E só faço o que eu gosto, só converso com quem quero, meus amigos são amigos mesmo, agora eu sei quem é quem. Estou lendo coisas que antes não tinha tempo, assistindo a filmes que queria ver e não dava,  passeio toda tarde..." –
Discorre sobre sua qualidade de vida atual, muito melhor que antes, diz ser outra pessoa. Parece sincero, suas palavras são alegres. Seu parceiro empurra a cadeira de rodas, percebe-se carinho entre eles. Sai para o corredor, eu o escuto brincar com outros pacientes.

Caso 11
Rui é um paciente chatíssimo. Não aceita os remédios, não concorda com as condutas, questiona a enfermagem sobre tudo, reclama dos colegas de enfermaria, foge para a outra ala, briga com visitas dos outros (não recebe visitas). De vez em quando piora, fica mais calado, não briga, está mal. Melhora e a implicância volta. Reclama da comida, da posição da cama, do horário dos exames, do plantão quando não vem para ver suas queixas e quando vem para examiná-lo.
Faz escândalo para ter veias puncionadas, xinga a moça do laboratório (-"Burra! Burra!"), tenta manipular a enfermagem gemendo e fingindo-se grave para não tomar banho, depois pergunta porquê está sendo esquecido. Procura compulsivamente pretextos para queixas.
Muitas internações, quando tem alta todo mundo fica aliviado, quando volta os residentes perguntam entre si: "quer trocar o Rui por dois dos seus pacientes?" ou "meus parabéns, o Rui é seu!". Difícil conversar com ele para saber sobre seus sintomas, tende a hipervalorizar as queixas, difícil saber o que é verdade, não tolera o exame físico, acaba mal olhado.
Tudo o aborrece, nada agrada, ninguém sabe nada do que ele tem, joga os medicamentos fora. Vai piorando, fica torporoso. De vez em quando parece ter momentos de melhora do coma, dá muxoxos, seu rosto se conserva vincado por rugas de contrariedade. Falece, a morte um comprido aborrecimento.
Ninguém reclama o corpo.



Caso 12
Dona Conceição, 58 anos, do interior do estado, vem à consulta com o marido, já doente, acompanhados de filhos, filhas, netos adolescentes. Enchem o corredor, todos estupefatos pela doença do avô, pai, marido. Quando falo a ele sobre a necessidade de testar a esposa, fica furioso. Ela chora. Acaba sendo testada - positivo - pede para não contar para ele. As filhas e netas, no consultório, choram e falam sobre culpa. Ela não concorda: "-ningém passa isso pros outros por maldade"...
Ele nunca pergunta sobre o exame da esposa. Falece oito meses depois, e Dona Conceição pergunta sobre quanto tempo de vida tem. Explico que ela está bem e não sabemos. As filhas ainda revoltadas. Pergunta novamente sobre perigo de beijar as netas, as filhas contam que tem evitado tê-las ao colo, com medo de contágio porquê "deu no jornal que saliva pega".
Muitas consultas depois parece mais tranqüila, mas ainda surpresa. "-Minha vida virou tudo de perna prá cima. Eu, já velha, não gosto de ficar pensando, não consigo entender tudo... Ele parecia tão quieto, do trabalho para casa e da casa para o trabalho...".
Uma filha que mora em Belo Horizonte diz que quer trazê-la para cá, para evitar mais sofrimentos: Dona Conceição tem sido evitada por ex-amigas. -"Muita fofoca, doutor, mas eu gosto de morar lá, fui criada lá, minha casa é lá. Vou aguentando...". 

Caso 13
Cléo e Pat se conheceram no Hospital-Dia, onde tomavam ganciclovir no mesmo horário para retinite por CMV. Passaram a vir juntas, somando a pouca visão que cada uma ainda tinha para se orientarem mutuamente nos pontos de ônibus, no trajeto, na travessia das ruas. Quase cegas, delicadíssimas, falavam muito baixo, raras vezes tristes, a despeito do conteúdo das conversas – CD4 baixo, remédios que estão em falta, vales-transporte que não vieram... Partilhavam suas desgraças e minúsculas alegrias: como foi fácil obter ajuda da enfermeira no posto para tomar o remédio no fim-de-semana, os vômitos que diminuiram.
Num fim de semana, Cléo piorou subitamente, foi internada em outro hospital e faleceu. Na manhã de segunda-feira, Pat chega um pouco mais tarde, pergunta por Cléo, antes de qualquer resposta vai falando: “-sonhei que Cléo tinha morrido, ela me falou que morrer é bom e que eu devia parar de tomar estes remédios”.
A enfermeira desconversa, diz que Cléo mudou os horários, mas está bem. Pat continua vindo, acaba sabendo da morte de Cléo, supera. Chegam os inibidores de protease, Pat, que chegara a pesar 29 kilos e ficar em cadeira de rodas, melhora, volta aos 58 kilos normais, volta a trabalhar, está feliz com o filhinho.  Os mortos se enganam?

Caso 14
Alex tem sarcoma de Kaposi disseminado, a quimioterapia não está funcionando bem. A mãe o chama de “meu neném” conversam em tatibitate. Ele nega a gravidade, faz planos de viagens que nunca acontecerão, recusa medicações, falta às sessões, a mãe tenta explicações e justificativas. Fica pior, é internado, a mãe chorando baixo ao lado do filho comatoso, caquético, palidíssimo, respiração difícil. Segura meu braço: “-ele vai melhorar?”, beira a histeria, mau ouve as explicações, não tolera ouvir falar em possibilidade de morte.
Chego pela manhã junto ao leito ao lado da janela, claridade fresca da manhã de maio. Alex está agonizante, os olhos não me vêm, os membros magérrimos imóveis. Desligo o soro, retiro a sonda, me sento ao seu lado, a respiração vai ficando mais irregular e espaçada, até parar de todo. Está morto. A mãe chega depois, o corpo ainda no leito. Não fala nada, só se senta também, olhos muito vermelhos. Segura a mão dele, cabeça baixa, soluços, alisa a cabeça sem cabelos. Depois se vai, sem falar comigo.

Caso 15
Chego ao trabalho, tenho paciente nova: Mariana, 3 anos, mora em Casa de Apoio. Pesa 6,8kg, está com pneumonia. –“está estável”, me informam. Me preparo para a cena caminhando pelo corredor, para avaliá-la, nunca a vi antes. A vejo de costas no berço, sentada, os tubos de soro, da sonda naso-entérica, da sonda vesical, a máscara de oxigênio sobre o rostinho caquético. Nem me vê chegar, compenetrada em empilhar cubos coloridos.

Caso 16
Colegas me passam os casos no plantão, pedem para avaliar dois pacientes internados hoje. Sebastião, leito 12, com quadro de meningite menigocóccica, já em final de tratamento, ótima evolução, é só conferir o resultado da punção de controle para dar alta. Roberto, leito 18, com meningite fúngica, tem SIDA, prognóstico mais reservado.
Resolvo ir ver primeiro Sebastião,  que está com alta programada, entro no quarto, percebo que ele e a companheira estão muito tensos, adoto atitude de leveza, brinco com ele, explico que não precisa ficar assustado, que o tratamento funciona bem e que ele vai em breve para casa, depois é só marcar o acompanhamento no ambulatório. Me ouve com surpresa, me pergunta se eu acho mesmo que ele vai ficar bem, repito que sim, fica mais feliz, a companheira ao lado do leito bebe minhas palavras, pede para me acompanhar no corredor: -“muito obrigada, doutor, o senhor é legal, o outro nos deixou assustados”. Reitero meu otimismo, aviso que vou buscar os resultados do exame para falar mais com eles, saio do quarto.
Peço à enfermeira os resultados do exame de líquor para liquidar o assunto e pedir ao residente que faça a alta, me surpreendo ao vê-los, pergunto à residente: “-esses são os resultados do Sebastião, do leito 12?”. –“São”, ela diz. Meu espanto continua. –“mas esse tem meningite fúngica, ele não tem não é meningite bacteriana?”  -“não, o outro que você ainda não olhou é que tem, está aguardando para ter alta hoje, esse é o HIV+”.
Eu trocara os nomes, lidara com Sebastião com um otimismo que eu imaginara para o outro. Entro no quarto outra vez, a tensão deles desaparecera, me desarmo, me re-organizo, sorrio para eles. Até hoje falam no assunto, em como eu lhes dei força quando estavam com medo de morrer de AIDS.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 11 (final)

 

As cidades e os símbolos – final



Tudo que se dá ou diz é símbolo dos sentimentos.
Todos os presentes são símbolos do amor, o presente único, arquétipo de todos.
Que mais posso dizer? Toma-me.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 10 ("Vulpan" e "Sudoeste")

As cidades e os símbolos – 3

O problema da morte (a saber: de não se poder mais conversar com as pessoas quando deixam de existir) foi resolvido em Vulpan com refinamento da escrita. Considerando que, se houver como conhecer profundamente alguém se pode prever quais seriam suas atitudes e palavras quando ela própria não existir mais para tomá-las ou dizê-las, os gramáticos de Vulpan desenvolveram pontuação tonal acurada. Limitações: analfabetos e crianças (estas, de qualquer forma não interlocutores plenos nem quando vivas).
O eu em grafismos: essa falsa imortalidade, cultivada como consolo de perdas. Os livros são um misto de pauta musical com palimpsesto para os sentidos. Estilos, sotaques, a precisão do aprendizado, os dicionários tonais.
Savantismo ao contrário: nenhuma memória, abstração riquíssima. Controle: filmes, depoimentos, comparação com parentes, conterräneos e contemporäneos, etc...Arqueologia do self. O que diriam os mortos?
O subjetivo é definido pelo objetivo, mas esse último não é reproduzível, portanto inapreensível.
A ânsia de escrever que toma alguns cidadãos, ocupados demais com deixar registros de si mesmos para viver.
Como as cartas, mensagens de e-mail, olhares, etc, nenhuma escrita resolve demanda de amor. Nem para os que morrem e que gostariam de serem amados mesmo depois de deixarem de existir (paradoxo), nem para os que vivem suas perdas. Em Vulpan se constata: que amor pode existir sem correspondëncia?


As cidades a serem feitas – 1

Confesso: não me esforcei em aprender os rumos nesta cidade, além de sabê-la a sudoeste. A relação com ela é fluida, tenho dúvidas se seriam possíveis as mesmas sensações ao visitá-la ou comentá-la com outros. Meus sentidos amortecidos para as informações, embebidos na calidez das pequenas caminhadas à noite, na rotina que se estabelece rápido nos horários do trabalho, das refeições e do sono. Rotina calma, de abandono das existências fora desta cidade, fazendo com que as idas e vindas até ela adquiram ar de sonho: lá não me dou conta de tudo que acontece, fora de lá o mais concreto são as lembranças, baças imagens de um braço, um banco ao sol, uma mesa, uma sala, o calor de uma pele, presença e voz. De uma ou outra forma, em mim a suspeita de irrealidade, incompatibilidade com o mundo. E, no entanto, reconheço esta mesma imaterialidade em outros espaços, esta intensa diluição dos sentidos, este espírito fugidio e impalpável, causando-me dúvidas entre nele mergulhar ou apenas esperar que aconteça. O fugidio não está naquela cidade nem em nenhuma outra, esta óbvia conclusão não esvazia a ternura que ela me evoca. Antes aumenta minha esperança, que eu a encontre ou construa: olho minhas mãos e escrevo palavras de saudade.

domingo, 5 de agosto de 2012

Outras cidades - Parte 9 ("Cidade dos Ventos" e "Céu de Março")

As cidades e os destinos – 5 (Palíndromo)

Estive numa cidade fustigada de sol e de ventos de janeiro, cujas ruas às vezes ando ida e volta. Pensei escrever sobre ela, algo que pudesse ser lido em sentidos vários, como se andasse em suas ruas. Ou não escrever. A não escrita uma das direções da possibilidade de escrever. Lembro ter havido momentos quando quis parar e não andar mais. Não andar é trajetória quando há muitos caminhos e nenhum destino. Contudo, um texto, mesmo quando seu sentido é múltiplo ou óbvio, tem sentidos diferentes de um texto não escrito. Andar indiferente ao destino é diferente de não andar. Sei disso quando recuso uma esquina. Foi assim e andei ao lado ou à frente, mesmo sem saber onde me levava, lentos redemoinhos nos pensamentos, rodeados por um vento estranho, que nos invadia os olhos, a boca, afogava e tirava o fôlego. De dentro do vento pensei: “-Esta cidade não precisa de mim. Eu não preciso dela”. Está sendo assim e escrevo. Talvez deva escrever por delicadeza e você o lerá por delicadeza. Andamos ao vento como se ele não estivesse acontecendo, até o qualquer destino. Então eu vou, eu vôo, na noite de 24 de Janeiro do ano de 2003. Esta cidade tem um nome entre muitos. O diria se seus olhos o pudessem ouvir. Eles não estão aqui: a cidade se apaga. Sigo suspenso no ar. Hoje é um tempo adiante. Um tempo seco.

 

 



As cidades deixadas - 3


Nos céus dos espaços entre as cidades o viajante, em início de Março, no frescor da noite após o dia quente, vislumbra os asterismos. Quantas pessoas de tantos lugares ao longo de tanto tempo os viram e verão... Eis cetis, que sei ser um sistema sextuplo e não uma estrela; capella marcadamente brilhante, no cocheiro, atraindo com naturalidade o olhar; arcturus, que demoro a identificar, desnorteado pelas suas companheiras; as plêiades (“seixu” para meus antepassados nas matas) fugidias ao olhar direto e sentidas na retina quando se desvia os olhos; mira cetis, estrela volúvel de brilho variável (mas previsível e cíclico); os aglomerados Messier, aparentes manchas delicadas, na verdade espaços enormes reunindo brilhos de muitas estrelas não distinguíveis individualmente; Eta-Carina, sistema duplo de estrelas de cores e magnitudes diferentes, que parecem próximas e na verdade estão afastadas; o negrume de alguns espaços onde não enxergo nada por limitações dos meus olhos míopes e incapazes de perceber as radiações em freqüência não visível e, de qualquer forma, vedados a mim. As tramas das nebulosas de brilho frio, fino, etéreo (um planeta imerso nestes brilhos conhecerá a noite?); os planetas solares, quase triviais. Quantas analogias possíveis entre estes brilhos e as pessoas, ou melhor, entre estes brilhos e as interações entre as pessoas, ou, diretamente: entre esses achados e as minhas formas de perceber nossa curta história. Repito os poucos nomes conhecidos em saudação respeitosa (compreendo o cuidado islâmico de não nomear Deus), tentando a melhor pronúncia do árabe, grego, latim, línguas antigas. Percebo enunciá-los tentativa de invocar tua presença. Como se pudesse me ouvir. Há (por um breve segundo) a sensação de que aqueles nomes nunca me pareceram tão inúteis. Silencio, aproveito o ar e os cheiros da terra. Através da madrugada e da estrada, caminhando no escuro, desfio minha memória, transfiro as quaisquer dores para aquelas distâncias, me sei miúdo e em paz. Canopus, algjebah, aldebaran, sirius a anos-luz, ouçam minha voz (como a de todos): eu sou um homem que acata seu destino e caminha na noite, sem medo e agradecendo tuas companhias. Das estrelas, essas alegrias: não dizerem nada.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Outras Cidades - Parte 8 (Planuras e "Tile")

As cidades deixadas - 2

Planuras,é o que se vê vindo do norte, do oeste, do sul: até essa cidade. Distante, é tradição de viajantes visitá-la, a maioria pelo mar. Diga-se, é cidade marinha, impregnada de sal, não apenas costeira. Tudo próximo ao porto. Em galpão que já abrigou locomotivas, o pátio recortado por trilhos, houve momentos de multidão e de encontro, agora já fechado outra vez, raios do sol o invadem pelas frinchas no telhado ou das portas, somente os pardais são ouvidos. Nas ruas vazias, antes dos galos, há grupos de cães trotando, noite fresca. Os mesmos nos últimos duzentos anos. Lá estive fugaz. Uma mulher navegara comigo a noite, límpida como rota a ponto e porto certos; intensa, e firme, e silenciosa, como chama de vela sem vento. A noite e a mulher. Ela sabia que os Jasmins-do-Cabo são a flor. Na despedida calou-se súbito, sem deixar de sorrir ou me olhar nos olhos. Mas sei: cheguei numa madrugada e saí em outra. Talvez as impressões de quem chegue ou saia em outras horas, conheça outras mulheres, ande em outros lugares, sejam diferentes, talvez não. O nome dessa cidade não foi dito, foi-me negado, permanece em murmúrios e intacta memória. Relatá-la aqui tem algo de profano em muitos sentidos.




As cidades e os símbolos – 2

As vidraças das fachadas dos prédios em Tile tornam as avenidas longas séries de espelhos paralelos. Os transeuntes, as coisas, os carros nas calçadas e ruas são remetidos ao infinito das imagens frente a frente. Não se vê o interior dos edifícios, nem se tem idéia dos seus espaços interiores. Atrás das portas de vidro nos halls não raro também há espelhos, outra camada de irrealidade. As imagens repetidas e re-refletidas multiplicam, ocupam e substituem o mundo. Uma sala que não existe se abre no teto, um vão entre duas pilastras (ou é apenas uma, a “outra” um reflexo?) pode ser um corredor ou um canto ou a continuidade do salão. Vidros instalados, diz-se, para aumentar a sensação de espaço (por exemplo no banheiro do hotel barato onde me hospedo) me parecem ardilosa armadilha. A multiplicidade de alternativas dificulta a organização de como se portar, desconcerta, não se sabe para onde olhar. Há ainda o fato de que os espelhos devolvem a quem os olha seu reflexo: quem busca nos espelhos explicações sobre o mundo exterior só encontra (não sem surpresa nem sem ganhos) os próprios olhos. Os visitantes, não habituados a este exercício, de início se debatem nas portas, tentam se orientar tampando com as mãos a luz que se reflete nos vidros, e então adotam o comportamento de quem se acha observado. Aos poucos (como acontece com os habitantes) à custa de se defenderem dos reflexos e dos olhares refletidos (digo, dos olhares sobre seus reflexos; digo, dos reflexos de olhares sobre os reflexos; digo, dos olhos-espelhos) se fecham em si mesmos, passam a não esperar nada do exterior e a cultivar a própria imagem como ideal a ser perseguido, usam os espelhos para reafirmar as linguagens do corpo consideradas cult, treinar os gestos, compor o “eu”. Não se interessam nem se apercebem se a imagem do espelho é o eu invertido, o outro lado, o que parece idêntico e é contrário, o que parece real - e é - luz (quase sempre artificial) refletida. Alguns se adestram tanto que se transformam em seus reflexos, aliás, agem em consonância com os efeitos de suas imagens, adotam atitudes que possam serem vistas de qualquer ângulo. Não sei se as expressões nos rostos e gestos dos corpos são para mim ou para os espelhos. Para os que não se lembram mais de como eram, talvez a primeira imagem pessoal enviada por algum espelho - quando do primeiro momento de passada frente ao primeiro espelho - tenha escapado, esteja agora viajando no espaço, fragilíssimos fótons, e seja recuperável com alguma artimanha da física relativística.
Relativismo: a única esperança dos reflexos que cruzam as ruas.
Então a revelação. Um cego atravessa as ruas de cabeça erguida. Eu o invejo e aprendo: espero a noite, caminho de olhos fechados, tateando as paredes, deixo Tile: as luzes e seus ricocheteios sem fim ficam para trás. Muito acima as luzes das estrelas, vagarosa e delicadamente, vão se tornando perceptíveis. As reconheço.

Outras cidades - Parte 7 ("Beira Rio" e "Bei")

As cidades deixadas - 1

Não há vantagem em insistir contra o calor abafado de Beira Rio, concorda-se, o chofer do táxi despreocupado o demonstra. O vento não existe sequer em sua mitologia, as tempestades de verão eterno, fugazes e violentas, não refrescam. A densidade do ar, diminuída pela umidade e pelo calor, causa sensação de irrealidade. Tranqüilizados frente à impotência, nada a fazer a não ser estar lá. Então, assim, houve uma tarde, gotejada pelo sol após a hora do almoço, em que um casal caminhava em sua periferia, distantes mas próximos. A tarde era líquida, parecia infinita, agora é passado. Pode-se apelar às memórias para evocá-la, pode-se reconstruí-la com os detalhes que se foi capaz de apreender e lembrar, pode-se tentar dar continuidade ao diálogo que aconteceu, imaginar as perguntas e respostas, as implicações, remoer os significados, os gostos que os olhares tiveram. Houve a tarde, a cidade está lá. O casal, levado em direções diferentes, a tem cada um ao seu modo. O calor, o sol, a estrada, a leve embriaguez pela cerveja, pelos ditos, pela presença, pelos sentidos. Há um que diz, às vezes, em seus devaneios, caminhando de olhos no chão sob o sol em outros lugares, como se rezasse: “Guardastes, ó Sol, as imagens que iluminastes, e as devolve, me envolvem, nesse brilho que ofusca. Lembra, caminho de pedras, o caminhar que aconteceu. Tenha em ti, cidade oeste, tu a que não é essa, que já vistes tantas tempestades, esse amor derramado em ciclone de chumbo e silêncio. Fundido, também líquido, suspenso em tua atmosfera. Numa tarde pessoal, separada dos tempos. Na pedrinha deixada sobre aquela mesa. Aqui caminho.”. Sabê-la no passado não a diminui nem causa dor. É lembrança, e lembranças são assim.


 

 

As cidades e as religiões - 4


Rezem, rezem, rezem, filhos de Bei! Calem teus desejos impuros, penitenciem-se, arrependam-se, sofram seus remorsos, implorem misericórdia, paguem dízimos, flagelem-se, jejuem, abstenham-se dos prazeres do mundo, esperem a morte. Alguém tem de justificar os prazeres de Deus. A cidade não dirá nada.

sábado, 14 de julho de 2012

Outras cidades - Parte 6 ("Xandia" e névoas)

As cidades e seus motivos – 3


Xandia tem história obscura, apagada e reescrita por muitas alternâncias de interesses, pouco chegou ao hoje. Os próprios monumentos e sítios arqueológicos, ao serem pesquisados, mais confundem que esclarecem, tal a profusão de indícios contraditórios, ou de contradições para explicar os poucos indícios, ou da falta de critérios na seleção das perguntas que se faz ao se deparar com eles, e há os que tentam mais explicá-los que compreendê-los. Puristas, como todos os tendenciosos, se apegam a fragmentos da história, aqui ou ali, como sinais de um todo que reconstroem segundo si próprios, obtendo o mesmo padrão mitificado do seu redor, os apresentando como verdadeiros. Mostram Y para ocultar X reforçando Z, simulam ocultar W para insinuar W+, enaltecem ou injuriam K com afirmações não verificáveis. Como já é sabido e já foi dito, "inventam o passado para justificar o presente e controlar o futuro". Contudo, os fragmentos lidos pelas diferentes facções não se encaixam em todo que permitisse vislumbrar de onde vieram. De tudo que se diz, escreve, alega, argumenta, fica evidente que nenhuma verdade resistirá, enquanto a realidade não for o foco. Num exercício de desprendimento, pode-se aprender que o mais real e perene sempre foi as manobras para dissimulação, ou melhor, que  a aparente falta de sentido dos indícios é indício de um padrão histórico maior: a repetição, pelas pessoas,  de erros, evoluindo muito lentamente. Esse aprendizado, para alguns, é importante, para outros pouco útil ou conveniente. Exatamente o que a história (e suas lacunas, aquelas partes de difícil compreensão para os que precisam deduzir contextos a posteriori) nos mostra.





As cidades e os destinos – 4


Ocorreu-me falar de uma cidade que me pareceu particularmente bela. Lembrei-me da avenida longa, suas luzes, semáforos, lanternas e faróis dos carros sob chuva fina, visíveis da sala de estar do hotel. Revi a cúpula da catedral altíssima, à minha direita enquanto tomava o café no terraço do prédio, a vista da baía e do porto, o caminhar entre velhas construções redivivas à noite, com seus concertos musicais, o cheiro de magnólias e brisa marinha na madrugada, caminhando ao seu lado. Como escolher o que era mais belo? Tento: o mais bonito era estar vivo. Era estar lá. Era tê-la comigo. Era uma mulher gostar de mim. Era me oferecer sua boca sorrindo. Era me abraçar entregue a mim. Não, tudo isso, e não no passado: o mais belo desta cidade é levá-la comigo, para sempre, símbolo de ter amado. Êi-la aqui, em meu peito, cidade de névoas que abrigam.

Outras cidades - Parte 5 ("Trite" e "Toz")

As cidades e os destinos - 3


Chegam a Trite imigrantes de outras regiões, fascinados pelo ambiente verde, pelas pessoas cordatas e silenciosas, pelo trabalho recompensador, pelo respeito mútuo que se lê nas faces dos transeuntes, pelos jardins bem cuidados, pela tranquilidade do senso de humor local, refinado sem ser agressivo, divertido inclusive ao rir de si próprio. Mesmo com as tantas diferenças que afluem, persiste em Trite núcleo a que vão sendo agregadas as contribuições e experiências dos que chegam, e estes sem resistências percebem a natureza humana de seus gestos, se esforçam então para trazer o melhor de si próprios. Valorizados, respeitados em suas singularidades, encontram sentido na paz comum. Contem-me, olho meu redor e vejo tudo que Trite tem: permitam-se.



As cidades e as religiões - 3


Os felizes habitantes de Toz, do lado de dentro dos muros, oram com seus livros absolutos, ouvem comovidos e gratos palavras dos iluminados que tudo sabem, em rituais queimam purificadoramente qualquer contaminante do mundo que pudesse ameaçar sua condição de protegidos eleitos. Gradativamente expandem os muros para mais adiante, a cidade tomando espaços antes selvagens, hostis, ignorantes, que vão sendo abençoadamente submetidos à boa ordem, ao conhecimento dos prazeres das regras, ao apaziguamento definitivo do caos, onde não há mais dúvidas - não é maravilhoso? Ocasionalmente são lamentavelmente obrigados (compreenda-se: a natureza humana, conquanto imagem do divino, não é perfeita, e a cidade tem o direito de se defender) a condenar alguém - horror! - a sair da cidade. Os presos de Toz vagam pelo mundo, condenados à liberdade mais abjeta e desesperadora. Uns poucos desaparecem, não são mais vistos, há boatos de sobreviverem em outros lugares. A maioria não resiste à pena, morrem à míngua, em grande sofrimento, ou enlouquecem segurando-se nas grades que os impedem de entrar. A outros acontece serem perdoados e readmitidos ao conforto da cidade, bondosa para com os que se arrependem, grande mãe, morada dos justos.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Outras cidades - Parte 3 ("confraria", "Ritális")

As cidades e a religião - 2


Existe no planeta esparsa, móvel confraria de não iniciados. Se reconhecem pelo sotaque dos olhares e gestos, se cruzam pelo mundo. Às vezes acenam amistosamente ou sorriem, se reconhecendo em lugares imprevistos, o calor no peito e uma harmonia imediata e antiga os identificam intensa, mútua, exclusivamente. Quem sabe aconteça no Kalahari, entendimento silencioso e profícuo entre caçadores bosquímanos; entre fregueses num pub na Islândia; entre tibetanos condutores de yaks partilhando trilhas sob nevascas; entre andarilhos formigando nos garimpos do Mato Grosso; entre estudantes pesquisadores no campo; entre estranhos nas salas de espera dos aeroportos; entre um homem e uma mulher quando acontece ponto em comum no espaço/tempo. Sem necessariamente nada em comum, cultura, signo, destino, não é isso. Só partilhar fluidamente (uns sabem, outros intuem) o que os faz rir ou chorar, como ouvem os ruídos do mundo, o jeito de perceberem o correr do tempo, sua desimportância, umas alegrias. Seu profundo senso religioso se maravilha com a existência mútua e com o fato de se reconhecerem nos momentos partilhados, quase sempre fugazes. Sua empatia fácil, algo mística, às vezes se materializa em paixões, redemoinhos juntos, o que não é garantia contra instabilidades humanas, nem controle sobre os rumos que a realidade toma. Não são raros, não são comuns. Somos nós.






As cidades e os destinos - 1


As bibliotecas de Ritális, cidade jovem, estão sempre vazias de leitores, embora exista contínuo e copioso aumento de seu acervo. Todos os seus livros são para serem lidos em algum futuro (não nesse, que é o futuro de ontem), mas para quando seus “motes” (o que os levou a serem escritos) já tenham passado no tempo ou na necessidade de serem considerados para qualquer decisão. São registros de destinos intuídos e ali (corajosamente) expostos, não defendidos nem recomendados, vislumbres, fragmentos de existências. Esses escritos, mesmo que descrevam algo que ainda não tenha sido vivido ou concluído, só serão lidos quando as respostas que oferecem já não fizerem mais diferença, seja por que as perguntas já nem sejam lembradas ou, se ainda conhecidas, contenham em si a decisão já tomada de seguir por outro caminho, ou seja: perguntas que de qualquer forma pertençam ao passado. Os escritores se consolam imaginando, em sua velhice, abrir esses livros empoeirados e ler como poderia ter sido, ou imaginando outros velhos (agora jovens e ao seu redor), ou seus descendentes, lendo o ora escrito e se comovendo com uma ternura quase insuportável (tão intensa que necessitara ser diluída no tempo), percebendo que o escritor já se comovia antevendo os olhos úmidos destes velhos do futuro, ao ser lido quando já não houvesse retorno, suas palavras não causassem mais censura ou temor, esvaziadas de seu tempo, plenas de eternidade. Alguns críticos alegam ser estratégia infame para ferir sem risco de retaliação. Não percebem que trata-se de tentativa de tardia felicidade, presentes para aqueles que agora não podem recebê-los. Os livros de Ritális correm (e oferecem) apenas um risco: jamais serem abertos.

Outras cidades - Parte 2 ("Arã", "Telpa")

 

As cidades e os símbolos - 1


Nas fotos expostas nas galerias e espaços públicos de Arã desfilam pioneiros, lugares, instrumentos, times de futebol, festas religiosas – gerações do gentio que se reconhece ou surpreende, observa os traços dos rostos dos antepassados, as expressões em seus olhos (há muito apagados) dos sentimentos por motivos que não podem ser conhecidos. Outras pessoas com roupas da época, ao fundo, irreconhecíveis, cujos nomes e histórias foram esquecidos, irrecuperáveis. Na praça de Arã um velho fotógrafo aponta a máquina para um novo prédio, prepara nova foto que anexará à coleção. Antes de apertar o disparador ergue um olhar que enquadra, mas também entedia. Não há interesse em documentar as mudanças para aprender com elas. As fotos provam apenas a existência do tempo.





As cidades e seus motivos - 1

Como todas as cidades, Telpa foi nascida de desejos ou contingências (os desejos não são contingências?), por eles teceu suas ruas, vielas, becos, esquinas. Ali onde se ergue uma casa e já esteve um armazém, acolá, onde agora passam os carros e houve um quintal; os novos desejos substituindo outros que se calaram, ou se perderam, ou se transformaram, ou foram sobrepujados, ou apenas esquecidos. Os habitantes de Telpa, ofuscados pelos próprios desejos/contingências, não enxergam os dos outros nem os antigos. Apagam memórias como se fossem suas, lhes pertencessem. Sem perceberem, se condenam e aos seus descendentes a urdidura infinita e sem rumo: ao apagar os desejos alheios para tecerem os seus passam a tecer o que não tem estofo nem onde se prenda. Seus olhos não vêm as pedras das ruas, mas o tráfego, incessante, incessável, para sempre. Há em Telpa quem seja feliz.

Outras cidades - Parte 4 ("Círope" e "Péren")

As cidades e seus motivos - 2


Círope tem muitas festas, as ruas enfeitadas atraem turistas, viajantes, legiões de espíritos convencidos de estarem onde deveriam. Os dançarinos típicos só usam aquelas roupas para os turistas, a comida é preparada por cozinheiros importados, os hábitos apregoados como tradições não são encontrados entre o povo. Círope é estereótipo de si própria, se perguntando em segredo se a cidade real é recuperável. Também é possível que Círope nunca tenha existido por si mesma, tenha sido sempre uma colcha de retalhos, ou nunca tenha existido outra Círope que não esta, caricaturizada nos objetos expostos, nas panelas fumegantes dos pratos “locais”, nos olhares assustados dos dançarinos - ao som das palmas automatizadas dos que descem dos ônibus e atacam as mesas e as mulheres, em qualquer ordem - tentando ver nos seus passos ensaiados sinais do caminho original, perdido, talvez nunca existido, inventado agora, ao moverem os pés em desespero, (seu desfile, suas vidas, por um fio), danças que juram antiquíssimas, ensinadas aos jovens, nelas adestrados, gritando (no grito se amparam): -Mais uma vez!

 

As cidades e os destinos - 2


Estar em Péren só é possível com tentativas oblíquas. As estradas não vão ter a ela diretamente, antes a tangenciam, estendendo vias secundárias ao passar por seus limites, se imiscuindo em suas ruas de tal forma que existe o risco de se passar pela cidade e só atentar para isso ao reconhecer os sinais dos arredores, já próximos da saída, num insight estranho: “era a cidade e já a deixo”. É cidade que se percebe ter encontrado nos preparativos da partida, onde os dias correram mais que em qualquer outro lugar, o tempo roubou no relógio, qualquer nostalgia de adeus só pode ser percebida muito tarde, transformada em surpresa, perda sem dor. Péren é cidade sem saudades, de sonhos de retorno impossível - já que todo reencontro é despedida -, roubados com habilidade, como se fossem supérfluos. Não poderia sequer descrever suas ruas, guardei retalhos visuais que não se articulam em imagem. Dizem ser bela. A verei outras vezes.




quinta-feira, 5 de julho de 2012

Outras cidades - Parte 1 ("apresentação", "paradoxo", "Belina"

Nesta Parte 1 incluo "Apresentação" e dois dos textos que compõem o conjunto "Outras Cidades", compondo série de textos escritos entre 2001 e 2006. A intenção é publicar um a três textos em cada parte desta série.

 

 

Apresentação


Confesso constrangimento óbvio: como justificar a semelhança (ao menos no formato, quisera na qualidade) com As cidades invisíveis de Calvino? Posso explicar, justificar seria outra história. O achado de Calvino - o uso das cidades como símbolo de relações humanas - me pareceu caminho feliz pela fusão de muitos aspectos da realidade, dos arrazoados e analogias sobre os sentimentos facilmente alocados nos espaços humanos (e onde mais poderiam ocorrer?) dos quais as cidades são o mais rico em significados. Imagino haver também realidade nestas “outras cidades”. Mas para quê descrevê-las? Pode-se escrever para o próprio consolo ou transcendência (o que talvez seja a mesma coisa). Não há (outra) justificativa.







 

As cidades e a religião - 1


O motivo de adoração dos habitantes de Belina não tem nome, nunca é citado. Não existe o hábito de mencioná-lo, dar-lhe graças, temê-lo nem suplicar sua ajuda. Não há dogmas a serem observados pelos conservadores ou criticados pela juventude. Não se erguem construções ou imagens, não há livros com regras de conduta, os estrangeiros os acharão um povo sem crenças. Contudo, seu respeito é tão grande que não se atrevem a criar qualquer limite ao seu motivo de adoração, seja denominando-o, imaginando sua aparência, opinando sobre juízos ou definindo suas preferências. Sequer ousariam descrever sua crença, como se isso fosse algum tipo de blasfêmia. Em matéria de divindades, o motivo de adoração dos belinenses atingiu a perfeição prescindindo da existência.



Felicidade não é atingível, e essa conclusão tranqüiliza. Parte da angústia era imaginar que a “culpa” pela ausência da felicidade era pessoal, algum tipo de fracasso. Ao colocar a felicidade como algo pertencente ao reino do imaginário, me aproximo dela. Rio: que tristeza! Ué?! Lembro: “when me they fly, I am the wings...” - Attar, Brahma.

Paradoxo

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Caçador

Este texto é de 1996.

A margem do dia
(réquiem para um caçador)

Marcelo Araujo Campos

                Chegara na tarde do dia anterior. Passando pelo açude, percebi os bandos de paturis na rasoura, revoaram quando o carro passou deixando poeira grossa parada no ar sêco e sem vento. O açude muito baixo e ainda longe as chuvas. No cerrado floradas de assa-peixe e pio de perdizes. Fins de julho.
                À noite, sentado na varanda, após a janta, limpei a espingarda em gestos lentos - tanto tempo! Havia manchas de ferrugem, pouco visíveis sob a lâmpada fraca, ásperas ao tato, e não as retirei de todo. Levaria a vinte-e-dois, mais leve, balinha miúda e difícil para caça a patos, mas de alcance (e desafio) maior. No céu vermelho do poente, li frio para a madrugada. Deixei uma blusa de mangas compridas junto da cama e uma capanga com balas pendurada na parede.
                Acordei com os galos, mas esperei seus cantos se tornarem repetidos para levantar. O frio esperado me gelou rápido as mãos e os pés enquanto me vestia no escuro. Encontrei o relógio e vi com dificuldade as horas - 3:50. Abri a janela e o ar da noite me fez juntar as mãos. Rumo ao banheiro. Bem desperto, alcancei fácil a espingarda e a capanga,  a blusa e  o chapéu. O metal frio era desagradável aos dedos  após contato com a água. Desci as escadas da cozinha sem barulho, comi os biscoitos deixados de véspera e saí para o tempo. Atravessando o curral, olhei para cima. A leste Órion bem visível, mas eu sabia que ela só estaria no meio do céu lá para outubro.
                Caminhava sem dificuldade pela trilha limpa, e naquele momento entendi perfeitamente porque meu avô rira quando, já caduco, certa noite eu lhe dissera que estava amanhecendo: pura alegria de estar vivo na madrugada, um prazer que ele conhecia. Foi a última vez que ouvi seu riso. Faleceu em meados de junho, quando o frio já chegou e aparecem raposas atropeladas nas estradas. Era um caçador, e essa minha homenagem: uma última caçada, suas técnicas aprendidas.
                O açude ficava a uma légua, e em passo rápido mas cauteloso, calças e botas molhadas de orvalho do capim, andei só atento ao caminho. Os pés insensíveis de frio. Mesmo na madrugada as flores do assa-peixe cheiravam. Aos poucos o céu passou de negro para azul escuro, e já havia uma faixa vinhosa no nascente. Cheguei às árvores da beira do açude, andando com cuidado na penumbra, difícil ver onde pisava. Reconheci um tapicuru numa clareirazinha e fui em sua direção. De lá a vista para o açude era limpa, eu esperaria sem pressa.
                Sentado num cupinzeiro, que a grama estava molhada, apoiei a espingarda na perna enquanto apanhava as balas - seis - e a carregava. Podia colocar mais de vinte balas, mas temia esquecer alguma. Melhor armar à medida do necessário. Saracuras três-potes cantaram no meio das taboas durante muito tempo, depois fizeram silêncio. Será possível que vai chover? Aguardavam também. Ali era a margem do dia.
                Às cinco e pouco havia claridade suficiente para discernir o verde escuro da  mata em frente. Me distraíra, olhando o nascente, de costas para o açude. Ao me voltar tive dificuldade em enxergar um bando contra o céu escuro. Alguma estrela ainda era visível. Cinco ou seis pares de asas sincopadas, vôo reto e firme, vinham em minha direção. Os soube, sem pensar, patos-do-mato, Cairina moschata conhecidos, auras metálicas. Vieram calados sobre a mata, curva suave para minha direita, descendo. Os acompanhava, apontando um dos que voava mais baixo, difícil ver a  mira no escuro. O dedo já pressionando o gatilho, mínimo a mais para o disparo.
                Atirei quando os tive de perfil. Houve um momento de indecisão, o bando oscilou entre uma ou outra direção de fuga. Patos enxergam mais cores que humanos, não deve ter sido difícil para eles me verem junto às arvores. Decidiram pelo leste. Eu errara e eles aceleraram as asas, ganharam altura e passaram direto, sem sons. Rumaram para o São Francisco. Nada a fazer. Me sentei, a arma já recarregada (nem percebi quando, com vem-e-vai automático, a recarregara). Olhei-os voar e sumir, pontos no céu clareando do leste. Meus olhos sorriam semi-cerrados. Um frio real, ajeitei o chapéu e voltei ao cupinzeiro. Minhas orelhas ardiam.
                Depois um bando grande de iriris pousou longe. Não me mexi. Pequenos demais. Quando outros patos apareceram eu já decidira esperar tê-los perto, se não pousados, para tentar outra vez. Como os primeiros, vieram de noroeste, desceram com elegância para pousar estabanados, também longe. Bichos desconfiados. Rumei para lá, me abaixando, até vê-los através das painas do brejo. Pisando no barro da margem, umidade nos pés, me apoiei numa árvore morta e tentei a mira. Atirar é o instante que já aconteceu. O pato revirou-se, agitado, e boiou enquanto o resto do bando decolou correndo sobre a água. Os iriris também voaram com assovios. O sol estava nascendo em  muitos vermelhos.
                O pato morto estava longe da  margem. Na curva do açude, onde passava a estrada velha, havia uma moita de bambus, morta quando a água do açude lhe cobriu as raízes. Caminhei até ela e quebrei uma vara longa, sem retirar os ramos. Ainda assim, sem opção: tive de descalçar as botas e retirar a roupa, água nos joelhos, tentativas tateantes trazendo a caça para a margem. Comparada ao ar, a água estava quente.
Com o pato nas mãos, abri suas asas, em arremedo de vôo, o pescoço pendente atrapalhando a fantasia. As peninhas do papo, claras, as do pescoço, negro-esverdeadas. Belíssima ave, os pés alaranjados, pequena carúncula no bico de serrilha delicada. Balancei-o, asas estendidas. Não havia nada além de maciez e entrega no relaxamento da sua morte. Seria a caça uma tentativa, invejosa, de voar, como se ter a ave me tornasse dono do seu vôo?
Novamente vestido e calçado, o frio me obrigou a me agachar depois de pendurar o pato pelos pés num galho. O sol da manhã ainda não aquecia. Fiquei mais um pouco, sombra comprida nas moitas, aguardando esquentar. O pato já estava meio endurecido, gotas de sangue seco nas penas da cabeça. Pombas-trocal solitárias passaram em direções variadas. Retomei a trilha com o sol às costas, calor bom. Pato pendurado na cintura, uns três kilos, me sujava um pouco. Enquanto caminhava retirava as balas não usadas.
                A mesma  morte que eu levara ao pato me será trazida um dia. Como ele, serei decomposto e extinto. Com estes pensamentos, olhei-o pendente, com o respeito que se tem pelos semelhantes. A finitude nos fazia iguais. Conquanto fosse triste saber que ele nunca voaria outra vez por causa de um gesto meu, reconhecer minha morte na dele sublimava meu sentimento de culpa. De qualquer forma, era a última vez.
                Havia fumaça na chaminé, subindo no ar da manhã. Abaixei os ombros  para passar debaixo da cerca, a espingarda contida na mão esquerda, a direita elevando o arame frouxo. A caminhada me fizera bem, e apesar do frio eu me sentia capaz de caminhar vários quilômetros. Na cozinha, joguei a caça sobre a pia e me servi do café, aproveitando o calor da xícara para aquecer os dedos.
                Depenei e sapequei as penugens restantes na pele segurando o pato pelo bico e depois pelos pés sobre as chamas do fogão de lenha, como muitas vezes fizera com codornas, perdizes, marrecos, patos, verdadeiros, rolinhas e outras caças de pena, quando criança, à luz da lamparina ou ao sol da manhã, quando meu avô chegava. Esse era um instante enquanto ele, analisando os ferimentos, discorria sobre técnicas e posições para o tiro, o momento melhor, cano esquerdo ou direito da cartucheira, estilos de arrancada das perdizes, os hábitos das aves, seus alimentos, pios e seus significados,  etc, etc... Trabalhei em silêncio.
Cortei os pés e a cabeça, abri pelas costas e limpei. Tinha ovos em formação.Temperei com sal e alho, deixei numa gamela coberto por peneira. Assei-o para o almoço e comi com arroz e tomates picados. Os ossos muito duros. Uma rêmige em bom estado guardei entre as páginas de um livro.
                À tarde apanhei as armas, desmontei, limpei, untei com óleo, remontei e guardei. Pela janela vi os coqueiros plantados por ele contra o céu, caía a tarde. Estava terminado. Voltei pela estrada de terra. Quando cheguei ao asfalto estava escurecendo, uma codorna atravessou a estrada. O vento já me levava os pensamentos, outros longínguos tempos. Acelerando rapidamente, virei para sudeste, costas para a estrada que apontava os restos do dia, viajei na noite.
                Na cidade ao chegar  pequenos torrões de barro se desprenderam das minhas botas e ficaram no asfalto, enquanto caminhei rumo à porta.